Um borrão onde deveria estar sua mente
“E é dessa maneira que eu, às vezes penso sobre mim mesmo, como um grande explorador que descobriu alguma terra extraordinária da qual jamais poderá voltar ao mundo para anunciar sua descoberta. Mas o nome dessa terra é inferno”
Malcom Lowry, À sombra do vulcão
1.
Talvez em outra encarnação eu e minha mãe tenhamos sido marido e mulher, obrigados a conviver, expurgados da inocência, num casamento forçado pelo destino ou pela sociedade, e isso explicaria a conflituosa relação de dependência e carinho que tivemos por mais de quarenta anos; e dentro desse talvez entraria a estranha autoridade que meu irmão tem sobre mim, por que um dia já fomos pai e filho, rivais no amor, sobretudo embaraçados nesse amor que vai sugando nossas identidades, moendo nosso orgulho e nos fazendo cristãos à força, uma força que não sabemos de onde vem. E talvez ainda, todas as mulheres com que me relacionei não tenham passado de mensageiras dessa força, cada uma levando um pedaço e colocando outro no lugar. E os amigos tenham sido inimigos. Se existirem outra vidas, com quantas vidas se faz um homem? Se fosse raptado, drogado, torturado, se me fizessem uma lavagem cerebral , me dessem outro nome, outra história, outra cultura, eu prontamente me faria outro. Sem nada disso, aliás. Por muito menos, trocaria minha vida e tudo que tenho por um novo começo. Mas isso é demasiado romântico. Humano, idiota.
Um idiota perdido em pensamentos idiotas, misturando crenças religiosas com revelações de folhetim, deitado em sua cama, às três da madrugada, nauseado. Se estivesse em casa, prontamente iria até o bar da esquina que ignora qualquer lei que o obrigue a fechar cedo e pediria uma bebida, puxaria papo com os notívagos freqüentadores do lugar , talvez me distraísse com a televisão de lá, a mesma programação noturna que em casa agrava minha melancolia. O lugar em que estamos muda tanto assim quem somos? Isso explicaria uma pessoa da mesma posição social, credo, raça ter atitudes e valores tão diferentes em épocas diferentes. Eu não deveria ter dormido nas aulas de sociologia anos atrás.
Não estou em casa, e nem em casa eu estaria em casa. Estou numa espécie de submarino de última geração, aguardando permissão para voltar para casa. Ou não.
2.
Meu último contato com o tenente Sales foi às seis e meia da manhã de terça, o que dá exatamente cinco dias sem sinal algum. Não fossem os instrumentos de navegação na saberia dizer que dia é, tenho a impressão que dias e noites se misturaram, desenvolvi o toque de checar repetidamente que horas são, mas não importa o quanto eu olhe para o mostrador do relógio, o tempo derreteu e virou outra coisa. Eu também derreti. Fazer cinco séries de exercícios por dia, assistir vídeos motivacionais do exército, ingerir doses cavalares de “pílulas do bem estar” também não está ajudando, aliás, está ajudando a derreter meu fígado junto. Talvez masturbação esteja me ajudando. Dormir só é bom quando você consegue eliminar um bom par de horas, no entanto sempre que acordo pareço ter voltado exatamente ao mesmo instante em que fui dormir. É como correr sem sair do lugar. Não tenho absoluta certeza, mas acho que dois dias atrás tentei me matar. Mas é muito estranho, sinto que não estava lá. Ontem tive a impressão de ver eu mesmo andando como um zumbi pelos corredores. Mas então quem estava me vendo? A razão parece estar no lugar onde esteve sempre esteve. Tecnicamente não estou louco, acho.
Sales está louco, ou esteve, é difícil saber se ele está vivo, na condição em que se encontra. A missão foi um fracasso, mas agora isso não importa.
3.
No dia 3 de março de 2013 embarquei junto com mais quatro companheiros num projeto experimental pioneiro que poderia mudar os rumos de toda ciência humana. Fomos escolhidos a dedo por nossas aptidões tanto físicas quanto mentais, e principalmente nossa capacidade de sermos, como diria, teleguiados para executar uma missão. Sabíamos o básico: o objetivo era testar uma nova forma de explorar ambientes poucos convidativos a presença do homem. Grandes profundidades ou alturas, lugares ermos, escondidos, cavernas e demais barreiras que a natureza impusesse à curiosidade humana. E de uma forma quase ecológica, sem uso de tecnologia “presencial”, pelo menos não a tecnologia física, nada de gastos milionários com trajes especiais, veículos ou robôs. Era desse jeito que nos vendiam o projeto. É claro que existiriam diversas aplicações bélicas, perigosíssimas. No geral, era parecido com algo tirado de um livro de ficção científica: a capacidade de invadir a mente de outras criaturas, dominá-las e movê-las em pequenas tarefas. E é claro também que já haviam tentado invadir a mente de seres humanos e o resultado, previsivelmente, foi desastroso, além de despertar uma infinidade de contestações éticas, que logo soterraram o projeto. Não que os russos não tivessem continuado, secretamente, e os chineses, e sabe lá Deus quem mais.
Meu papel não era questionar. O valor que pagavam por dia era absurdo, não precisaria me preocupar com mais nada nessa vida. Com alguns meses nesse emprego eu iria parar na lista da Forbes. Mas foram só seis semanas. Junto comigo estavam a tenente Riechel, responsável pela engenharia e manutenção do submarino, pelo comando da missão, (era dela que recebíamos as broncas), o tenente Sales, responsável pela navegação e pela execução das diretrizes técnicas, e mais dois civis, a doutora Monica, bióloga, oceanógrafa e mais uma dezenas de títulos e a Doutora Flavia, que cuidava da saúde física e psicológica dos tripulantes, além de servir os cafezinhos. Eu era a bucha de canhão. Bom, modo de dizer. Era quem entrava num tanque cheio de um líquido viscoso que me deixava em transe, usando um capacete estranho que parecia ter sido retirado de um gibi dos X-Men, usando um traje de banho que valia no mínimo uns cinqüenta milhões de dólares.
A “arma”, como a Tenente Riechel gostava de chamar, era baseada num conjunto de programas bizarros, um deles era capaz de multiplicar a aura psíquica (terminologia que eles usavam) de uma pessoa, outro conseguia deformar o campo morfogenético de um lugar, abrindo um túnel por onde o “poder mental” de uma pessoa poderia viajar até outro ser vivo, desde que este tivesse pouca força de vontade ou simplesmente uma inteligência menor do que quem estava emitindo. A idéia geral lembrava o que o Conde Drácula dos filmes e quadrinhos fazia com ratos e morcegos.
A principio as cobaias só conseguiam dar “sustos” em bichos pequenos, como formigas e moscas, depois em galinhas, ratos e coelhos. Isso tudo levou anos de pesquisas com repetidos fracassos. Até que um cientista russo assombrou seus financiadores fazendo com que cachorros e pequenos macacos realizassem tarefas em locais muito distantes de onde ele estava. Isso parecia ser o ápice. Em novembro de 1999 o cientista austríaco T. C. Kruse comandou uma dezenas cavalos numa pradaria, projetando sua vontade a quase um quilômetro de distância. O que não costumam contar sobre esse experimento é que quando cessou o controle, os cavalos enlouqueceram e correram sem rumo por dias, até serem abatidos por fazendeiros locais, isso depois de devastar pastos e até atropelar crianças.
Depois veio a fase de testarem em seres humanos. Os resultados parecem ter sido tão horríveis que até hoje pouca coisa foi relatada. Apenas que, homens enlouqueceram, se tornaram esquizofrênicos , alguns entraram em estado vegetativo, e há relatos de que filhos de mulheres que engravidaram nesse época nasceram com algum tipo de psicose e autismo. Quando finalmente se convenceram de que a mente humana possui seus próprios e misteriosos mecanismos de defesa contra esse tipo de invasão, eles retomaram os experimentos em animais, dessa vez com um outro viés.
É aí que eu mergulho. Mais ou menos em 2011 fui recrutado para uma missão secreta , uma colaboração entre exércitos de cinco países, incluindo Brasil, Estados Unidos e Israel . Um dos requisitos era não ter família, nunca entendi muito bem isso. Dois anos depois meu corpo e minha mente estavam perfeitamente alinhados e condicionados para lidar como o que eles chamavam de “o protótipo”. Quanto menos eu soubesse, melhor.
Uma parte do trabalho era passar horas “meditando” com eletrodos na cabeça, ouvindo uma música chatíssima que diziam ser relaxante enquanto a Dra Flavia ao lado segurava um copo de café e dizia “não, não está bom”. Eu o tenente Sales éramos os únicos com permissão para usar o a “arma”. Alternando os turnos, eu e ele brincamos por dias de controlar cardumes de peixes, tubarões, crustáceos. Era divertido de um jeito insano, quase viciante até. Deslizávamos da consciência comum para uma espécie de piscina mental, sentindo a mente se tornar liquida e escorrer para dentro de outras criaturas. Era quase um videogame. De fato, ninguém saía do corpo ou coisa parecida, mas sentíamos a mente percorrer alguns metros, até travar e ser puxada de volta. Depois de cada sessão conversávamos por horas sobre cada experiência, cada gosto, sensação intuída naquele enorme aquário, e sempre a tenente Riechel tinha que nos obrigar a dormir. Sales sempre foi muito mais entusiasta das possibilidades do experimento, me falando das implicações médicas daquilo, do controle sobre microorganismos, no fim de algumas doenças, etc. Eu dormia sonhando com o cheque que iria descontar depois da missão.
4.
Cada passo do experimento era rigorosamente planejado e controlado, pela tripulação do submarino e por um comando externo, formado por uma junta de cientistas e militares. Mesmo assim, em algumas situações, quando estávamos tentando projetar a consciência sobre os animais próximos, algumas interferências tiravam temporariamente o controle das nossas mãos. O próprio esforço de manter um elo psíquico com os animais era muito desgastante, algo que se rompia com facilidade. Mas todos estavam otimistas. Quando se conseguia estabelecer o elo, era como assistir um maestro reger a sinfonia. Geralmente quanto mais simples fosse a espécie, mais sincronizados seriam os movimentos. Nossa bióloga ficava deslumbrada, falava o tempo todo sobre como o acesso direto a “mente” desses bichos reescreveria os livros de ciência. Sales protestava que a única coisa que ele conseguia ler nas mentes dos peixes era “estou com fome”.
Experimentar a projeção em outros seres humanos era proibido, terminantemente. Entretanto, nós os “mergulhadores começamos a esboçar uma conversa telepática. Mesmo um do lado do outro do outro as palavras saiam bagunçadas, como dois bêbados tentando se comunicar após um porre homérico.
5.
Eu era muito cauteloso, ou medroso mesmo. Checava mil vezes os instrumentos antes de mergulho no tanque. Sentia a corrente psíquica me levar um pouco mais longe e já recuava. Sales conseguia se manter firme em sua projeção mental por muito mais tempo, transformando os arredores do submarino em uma fazenda subaquática em que ele era o fazendeiro.
Um dia nos aproximamos de um grupo de baleias. Como rainhas do mar elas não se submetiam. Eu me exauri tentando estabelecer alguma conexão, mas em questão de minutos não agüentava mais. Sales me cumprimentou pelo esforço, assumiu o posto, pôs capacete, se concentrou e dali a pouco vimos através dos monitores vimos uma das baleias se separar do grupo. Estavam em seis. Ele havia conseguido o elo, e descrevia para nós a incrível sensação, com emoção na voz. Foi quando senti um calafrio. Agora todas as baleias cercavam o submarino. Mesmo sem o capacete, tive a impressão de ouvir o canto delas no meu ouvido, e um aumento de densidade no corpo, como se a gravidade de repente aumentasse, me levando pra baixo. Comecei a passar mal e a Dra Flavia veio medir minha pressão. As luzes se apagaram, e dessa vez a gravidade enlouqueceu para todos. Lembro nitidamente de todos os tripulantes ficarem de cabeça para baixo enquanto luzes de emergência piscavam.
Até hoje não faço a menor idéia do que aconteceu. Mas quando as luzes se acenderam olhei em direção ao tenente Sales e ele não estava mais com o capacete. Seu olhar estava vazio, fixo, sem reação. Sua boca estava paralisada como que detida no meio de uma frase.
A Tenente Aldrey de imediato acionou o protocolo de resgate. A Dra. Flavia estava convencida de que a pane no submarino tinha sobrecarregado o “protótipo” e causado um derrame em Sales. Horas se passaram. Depois do pânico, uma estranha calmaria tomou conta das águas.
Eu senti que de alguma forma a mente de Sales foi puxada de volta, mas guardo para mim essa teoria . Os testes que fizeram nele tiveram resultados inconclusivos. Não foi um derrame, mas quase uma lobotomia, só que sem alterar uma célula do cérebro. Sua consciência simplesmente se recusava a voltar, mas o cérebro exercia suas funções burocráticas, mantendo o corpo vivo. Não foi uma morte cerebral comum, até onde fiquei sabendo.
Naquela ultima vez que o vi senti um borrão onde deveria estar sua mente, isso mesmo sem usar o protótipo. Acho que aquilo modificou minha cabeça, mas não coloquei nada disso no relatório.
Depois de voltar a superfície passei dias isolado numa cidadezinha do interior, com esperança de receber alguma explicação. Dada a natureza secreta da missão, eu tinha de ficar calado e,no escuro da alma, remoer teorias para mim mesmo.
6.
Dois anos depois fui recrutado para participar do teste de um novo protótipo. A princípio recusei, eles me ofereceram uma pequena fortuna, a ganância falou mais alto. Dessa vez o trabalho, segundo eles, seria mais fácil. Os mesmos cientistas que haviam desenvolvido o protótipo criaram uma droga que quando injetada em golfinhos e baleias facilitava a ligação psíquica entre o controlador e o controlado. A missão também seria simples, eu e mais uns novatos iríamos controlar um grupo de golfinhos no resgate de uma ogiva nuclear perdida no meio do oceano pacífico. Fácil mas perigoso. Assim que fosse localizada, a ogiva, se não explodisse, seria trazida a superfície e desarmada. O grau de insalubridade da missão era altíssimo. Mas lá fomos nós.
7.
Eu e mais dois recrutas mergulhamos no mesmo tanque cheio de um líquido viscoso, colocando novamente aquele capacete bizarro e relaxamos ao som de uma new age bem cafona. Em alguns segundos senti a diferença do novo equipamento. Não era mais um transe, e sim uma quase alucinação, em que me via frente a uma piscina sem fim, com um céu de mentirinha e uma bruma pesada avançando na minha direção. De repente ouvia a voz, por que naquele momento era uma voz, alta e clara, só que numa outra língua. O golfinhos surgiam ao meu lado, e assim me via como líder do grupo. No meio disso um dos golfinhos se virava e quem falava era o comandante da missão, orientando cada passo. Por minha vez, ia conduzindo os animais, afundando naquelas águas, enxergando tudo com seus olhos, maravilhado.
Após um total de três mergulhamos conseguimos chegar até o local onde estava a ogiva. Um dos golfinhos levava uma carga contendo um material químico semelhante a uma espuma isopor, que quando liberado envolveu o artefato, se solidificando em seguida e facilitando o transporte. Tudo transcorreu bem até aí. Recebemos parabenizações lá de cima.
No meio do caminho de volta senti uma voz, ou melhor, um arremedo de voz, algo entre o sussurrado e o cuspido, se sobrepor as vozes excitadas dos golfinhos. Foi quando percebi um cardume de águas vivas de nós, ou deles no caso. Elas começaram a vir pra cima, dançando no meio do caminho, até que em um certo momento foi impossível não dispersarem, e cada um dos golfinhos foi pra uma direção. Senti o elo enfraquecer, até que se rompeu de vez. Perdemos contato. Acordei ofegante dentro do tanque. Alguma coisa deu errado, ouvi vozes dentro do submarino dizerem. Fechei os olhos e mergulhei de novo. Acordei dentro de um túnel vermelho, aparentemente debaixo d’água. Mas nem sinal dos golfinhos, nem do artefato nuclear. Na verdade ouvi um grande chiado como se tivesse entrado água no ouvido, vindo de todas as direções e de nenhuma. Percebi grandes olhos me cercando. Eram baleias. Mas elas não estavam ali comigo. Na verdade estavam muito distante ali, em uma praia, encalhadas, morrendo pouco a pouco. E isso foi horrível de se sentir. Pior, eu tava em um elo psíquico com todas elas . Comecei a me debater, a querer sair dali. Tive a impressão de que me faltava ar, minha pele descascava, meus olhos secavam, minha carne se soltava e meus órgãos estavam empilhados uns sobre os outros, derretendo.
Fiz um esforço mental como nunca havia feito antes, literalmente pedindo socorro. Sabia que meu corpo estava a salvo a pouca distância dali, mesmo assim foi como se estivesse nadando contra um tsunami.
Tudo aconteceu em uma fração de segundos, que pareceram décadas. Senti minha consciência voltando através do oceano. E alguma coisa voltando com ela.
8.
Faltava pouco para abrir os olhos outra vez. O corpo era uma carcaça dormente, cheia de dores. Ainda estava tudo embaçado. Eu não sabia se os recrutas ao meu lado tinham experimentado o mesmo pesadelo que eu.
Ouvi um grito.
No limiar da consciência testemunhei uma cena inacreditável. Queria ter imaginado tudo aquilo que vi. Era o Tenente Sales, o que restava dele. Seu espírito, sua mente ou seja lá que for. Havia habitado tantas formas, se misturado com tantos seres, lutado para manter a unidade, eu quase podia ouvir sua voz dizer para mim, mas era um fiapo de voz, uma luz que acendia e apagava, reaparecendo cada hora em uma direção diferente.
Um dos recrutas estava no meio daquele turbilhão, sua energia sendo drenada, sem conseguir reagir.
Fiquei paralisado, sem saber como agir, até que Sales surgiu na minha frente, sorrindo, mas não era mais ele. Sua pele era feita de escamas, seus olhos eram opacos, e mesmo sabendo ser impossível, senti um cheiro úmido, podre. Do meu lado o que restava do recruta era sugado pelas águas vivas. Sales me encarou durante um momento, e como se tivesse cansado daquilo, se desfez num enxame de criaturas marinhas.
Lembro de abrir os olhos no tanque e desmaiar em seguida. Quando acordei de novo já estava no hospital da marinha, em terra firme, cercado de cuidados máximos.
Aparentemente aquele recruta não sentiu nada do que vi. Nem os outros. Aliás, eles recuperaram o controle dos golfinhos e concluíram a missão com sucesso. Segundo meus superiores, meu organismo não reagiu bem a experiência. Me resignei a idéia de que tudo não tinha passado de uma alucinação, um mal estar, qualquer coisa do gênero.
9.
Entretanto, um mês depois recebi uma carta sem remetente.
Uma pessoa, que a principio se identificava como um dos recrutas (ninguém sabia o nome verdadeiro de ninguém naquela missão, apenas falsos codinomes) e dizia que estava vivendo tranquilamente em um país distante, viajando muito e procurando respostas para perguntas pessoais.
Estranhei o tom de intimidade, as referências diretas ao nosso convívio, já que trocamos poucas palavras dentro do submarino. No entanto, a medida que ia se explicando percebi um tom, uma familiaridade nas idéias. Recebi outras cartas que me esclareceram, ou pioraram minhas dúvidas. Era o tenente Sales, e ao mesmo tempo não era.
Nessa parte estou tirando minhas próprias conclusões, que na verdade são bem confusas. A história não faz sentido, mas é por aí. O espectro do tenente Sales ou sua consciência, com o queiram chamar, se misturou, penetrou na mente do recruta. O teor das cartas mistura as personalidades dos dois, misturadas. Elas falam juntas.
Talvez a consciência que vi naquele dia estivesse tão diluída pelo tempo que ficou fora do corpo que tenha restado apenas uma fração, uma fração que lutou bravamente para não se extinguir, vagando quase eternamente perseguindo o rastro de padrões mentais deixados por nós. Lembro vagamente de uma aula que explicavam sobre a capacidade do “protótipo” de criar fendas permanentes no campo psicogeológico (não sei se era mesmo esse termo, pode ser outro mais estranho ainda). O fundo do mar logicamente não é tão freqüentado tanto assim por mentes humanas, então uma das teorias dizia que essas fendas demoram muito tempo para desaparecerem. Na minha concepção a consciência de Sales ficou nesse minúsculo labirinto. Por anos.
Que loucura, ignorem tudo que eu disse. É absolutamente absurdo. Nenhuma palavra sequer faz sentido. No entanto, essas cartas que recebi provam que em algum canto desse planeta, duas consciências dividem o mesmo corpo.
10.
Outra coisa é que de uns tempos para cá, logo após minha última missão, tenho me sentido fora do corpo. Eu acordo a noite e vejo a mim mesmo me olhando. É assustador.
Me consultei com alguns psiquiatras e após um certo tempo de tratamento houve uma melhora. Mas foi passageira. Eu estou aqui digitando essa frase, e ainda estou naquele submarino. Estou dentro do mar e de vez em quando as ondas invadem meu quarto. Tive alguns apagões recentemente e sempre despertava andando pelas ruas. Isso me dá muito medo. Mas eu voltava para casa tão instantaneamente. Como se nunca tivesse saído. Aliás, evito sair de casa. Não que adiante muita coisa, já que nem mesmo dentro de mim estou seguro.
Ainda sou uma daquelas baleias, encalhado na praia, esperando sem esperança, que venha uma enorme onda me cobrir, e que essa onda expulse todas essas criaturas feias que agora me assistem secar até o fim.
Qualquer lugar em que eu esteja é um não lugar.