A morte do avô
Quando meu avô morreu eu não derrubei uma lágrima.
Eu estava indo trabalhar. Meu pai me ligou quando eu descia do ônibus, prestes a entrar no metrô. Voltei. Minha mãe foi resolver coisas, eu e meu pai ficamos em casa. Vi filmes a tarde toda, até que ela nos mandou irmos para o local do velório. O mesmo em que minha vó tinha sido velada. Ele também seria cremado. As cinzas da minha vó ficaram por anos na estante da minha tia. Não sei o que foi feito com as do meu avô.
Sempre tem um parente que vai em todos os velórios, mesmo de gente que ele não tinha contato. Os tios do meu pai são essas pessoas. Estavam lá, ficaram num canto conversando com meu pai. Minha tia, pessoa detestável, chorava, dizia absurdos. Só faltou o clássico “eu quero ir junto”. Ela que tirava dinheiro da aposentadoria do meu vô, que ficou com as jóias da minha vó. Minha mãe ficou chorando sozinha num canto, eu não tive coragem de me aproximar dela. Fiquei com a minha prima num canto, ela que estava com vergonha do escândalo da mãe dela.
Minha vó morreu numa madrugada de quinta para sexta. Terça seria feriado, então fiquei esses dias todos sem ir para o trabalho. Vi filmes e fui ao cinema. Meu vô morreu numa segunda, acho. No dia seguinte eu já estava no trabalho. Não fazia diferença. No caso da minha vó eu chorei muito na sexta-feira seguinte, quando contei tudo para uma colega de trabalho. Dele não derrubei uma lágrima.
Minha vó veio para o Brasil quando tinha 17 anos, de navio. Acho que ela trazia alguns dos irmãos, e um baú com seus pertences. Baú esse que por anos ficou nos fundos casa, com as ferramentas do meu avô. Sempre quis saber o que tinha lá dentro, mas não me deixavam mexer. Minha mãe dizia que tinha ratos. Minha vó foi empregada doméstica, e ela me contava que aos domingos se reunia na Lapa com outros patrícios, portugueses que assim como ela vieram tentar uma vida melhor. Numa dessas reuniões ela conheceu meu vô.
Acho que ela casou virgem, e pelo que fiquei sabendo ela engravidou da minha mãe logo na primeira vez. Descobriu nos primeiros meses de casada que meu vô tinha deixado um filho em Portugal. Eu vi uma foto dele, mas minha mãe disse que ele já morreu. Uma vez meus avôs brigaram sei lá o porquê, e ele bateu nela. Minha vó correu para a casa da mãe, ela o mandou voltar para o marido.
Minha mãe cresceu nesse lar bizarro. Os dois nunca demonstraram afeto por ela, nem por mim. Não tenho essas coisas de ancestralidade, de laços familiares. Tenho essa história cheia de buracos. Minha vó tirava dinheiro da feira para me comprar presentes. Calcinhas bege enormes e coisas de cozinha. Hoje eu amo cozinhar, e quanto mais confortável a calcinha melhor.
Minha mãe sempre tentou agradar meu vô, e eu acho que sempre tentei agradar meu pai. Quando me tornei adolescente ele parou de se comunicar comigo. Eu sempre fui o xodó dele, e de repente eu não existia mais. Agora temos a conexão dos livros. Falamos de Ferrante. Ele fala da gata dele, eu pergunto da minha gata que fica com ele.
Tenho pensado muito na minha vó ultimamente. Queria ter perguntado mais coisas para ela, queria que ela tivesse me ensinado mais receitas. Inclusive, minha vó não cozinhava bem. A comida da minha mãe não é boa. Mas a minha é. Nunca tive essa coisa de comida de mãe ou vó, tenho a minha. Às vezes sinto falta que cozinhem para mim, que cuidem de mim. Estou sempre cuidando dos outros, até de quem não devia.
Minha tia expulsou a minha prima de casa. Até hoje não entendi o motivo, além da homofobia clara. Minha tia fugia de casa. Uma vez ela jogou uns vinis fora e minha vó os recolheu e me deu pra brincar. Foi assim que conheci The Cure. “Killing an Arab” continua sendo a minha preferida. Uma vez eu transei ao som de The Cure.
Uma tia avó vivia me dando conselhos amorosos. Ela ia ser a madrinha de casamento da minha mãe, mas a família não deixou porque ela era da umbanda. Escolheram uma outra. Essa outra cuidava de mim quando eu era criança, para minha mãe poder trabalhar. Certo dia descobriram que o cuidar dela era me deixar trancada no quarto o dia todo. Sorte que eu sempre fui desligada e acho que nunca me dei conta de que estava trancada.
Eu brincava muito na casa da vizinha. Eu adorava ir lá porque tinha uma rede e porque a avó da minha amiga fazia feijão preto. Uma vez, quando eu tinha seis anos, o avô dela me disse que eu já tinha peitinhos. Esse velho tomou conta de mim algumas vezes quando meu pai passou mal de pedras no rim e minha mãe teve que sair correndo com ele pro hospital de madrugada. Fico grata de não ter memória alguma dessas noites.
Tem um cara na rua dos meus pais que fica sentado no ponto de ônibus olhando as meninas que subirem. Eu gostaria de gritar e cuspir nele. Minha mãe disse que é para eu relevar, porque ele é velho. Todos eram velhos, indefesos, coitados. Odeio cada um deles.
Nessas épocas que meu pai tinha pedra nos rins um primo dele veio morar com a gente. Compramos um sofá cama para ele dormir. Eu enchia o saco, não deixava ele arrumar os lençóis, pulava. Ele ouvia muito Depeche Mode. “Strangelove” era a minha preferida. Até hoje. Ela foi lançada no ano que eu nasci. Ele é ruivo, mas sempre o chamaram de Zé Loiro. Eu gostava muito dele. Lembro de seu rosto barbudo, com marcas de acne e cheiro de cigarro. Não o vejo há uns 20 anos.
Minha mãe ia ficar muito brava se lesse esse texto. Meu pai acho que não se importaria. Não falo dos parentes dele, apesar de odiar vários. Não são relevantes. Não tenho laços. Essa pandemia me mostrou que eu não posso contar com muitas pessoas. E por incrível que pareça estou tranquila quanto a isso. Me preocupo com meus gatos, são os únicos que dependem inteiramente de mim.
Comentei que estava nostálgica. Uma amiga disse que era por causa da lua minguante em peixes. Ou algo do tipo. Deve ser.
*Este texto foi publicado originalmente na newsletter from her to eternity. Você pode assinar clicando aqui.