Diários de Quarentena
Eu sempre fui o que os adultos costumam chamar de uma criança com “a imaginação fértil”. Com pouca coisa construía um mundo todo próprio para brincar. Adorava aqueles blocos de construção em madeira, a versão operária do Lego.
Fui perceber que minha “imaginação fértil” fugia um pouco do normal quando anos depois entendi que tinha criado uma realidade paralela completa na minha cabeça.
Em casa éramos só eu e minha mãe, ela trabalhava demais e nunca estava comigo. Eu ficava integral na escola e sempre era a última a ser buscada.
Durante anos eu acreditei que minha mãe tinha uma outra família. E não era uma simples fantasia, tinha certeza sobre isso. Era o meu maior segredo ter descoberto esse fato.
Hoje ainda, se eu me concentrar, consigo visualizar a outra família da minha mãe. Existia um pai e um casal de filhos. E, na verdade, aquela que era a família real. Eu era só a criança que minha mãe tomava conta. Eu brigava com o sono porque tinha absoluta certeza que ela me colocava para dormir para poder voltar para a família dela, então me esgueirava de madrugada para seu quarto tentando saber se ela estava lá.
Me lembro, quando depois de muitos anos, contei isso pra ela. O quanto riu e o quanto me doeu seu riso. Me torturei com essa história por anos e, mesmo sabendo de sua irrealidade, fez parte de mim. Ela ria, pois sequer dava conta de mim, que dirá de outra família. E eu fiquei ofendida, porque acreditei verdadeiramente nisso por mais tempo do que seria saudável.
Acho que por essa capacidade de criar coisas na minha cabeça, me refugiei desde muito cedo na literatura. Podia fingir que era uma capitã de areia ou uma das irmãs Bennet sem ser julgada.
Mas minha vida toda é tomada por criar ou reviver coisas na minha cabeça. Toda conversa passa por minha mente com o que queria de fato falar, as respostas que queria dar, ouvindo o retrucar de palavras que nunca existiram.
Neste sentido, está aí o motivo de eu ter pouco controle do que falo, para eu não ter que me martirizar com aquilo que não disse. E, também, o fato de eu me manter sempre ocupada, sempre cercada de pessoas. Se a vida se movimenta ao meu redor tenho menos oportunidade para inventar situações irreais na minha mente.
E isso é mais uma das coisas que a quarentena tem destruído. A cada dia construo mais relações hipotéticas. Tenho diálogos e brigas. Crio fantasias do que poderia ser sem nunca ter sido.
Me vejo em outra cidade, recebendo pessoas do meu presente que, então, serão meu passado. Invento pessoas, lugares, cheiros. Tenho diálogos longos e profundos ou pequenas brincadeiras, piadas internas. Me vejo na estrada, em caminhos que nunca estive. Encontro estranhos, arrumo problemas, prevejo soluções.
Revivo fatos do passado que queria esquecer. Arquiteto pontes de um futuro que nunca virá a ser.
Tenho voltado, novamente, a me refugiar na literatura, mas ler tem sido difícil, meus pensamentos tem me distraído fácil demais. Me voltei (e essa não é a primeira vez) à literatura russa, acho que eles satisfazem bem minha fome pelo drama. No fundo, acredito que russos e brasileiros tem mais em comum que uma visão superficial faz acreditar, mas essa é uma outra discussão.
Meu eterno medo é que quando tudo isso acabar eu esteja gostando mais desse universo paralelo, seja o que o crio sozinha ou o que os livros me entregam, do que da realidade que nos espera.