Sobre pés de cebolinha e a possibilidade de um diário de quarentena
Por: Fabrina Martinez*
Já tem alguns dias que ouvimos piadas como “sou uma das 34 pessoas que seguem em isolamento” ou “ainda sou das cinco pessoas do Brasil que dá banho no saco de batata palha”. Dito isso, devo ser uma das centenas de milhares de pessoas que começaram fazer um diário da quarentena e pararam. No meu caso, começar e parar algo é quase parte da minha personalidade. Mas parar esse diário foi um raro movimento de autopreservação e tenho certo orgulho dele.
Dia 19 fará três meses que estou em casa. Saí para questões básicas e emergenciais. De outra forma, em 90 dias saí de casa menos de 15 vezes incluindo trabalho, mercado e saúde. Noventa dias fazendo minha parte nessa Não Quarentena brasileira. Dessa forma, o quê eu colocaria no meu diário?
A melhor analogia que consigo fazer sobre esse possível diário é com meu possível vaso de cebolinha. Sim, o tempero. O vaso tem as medidas necessárias, tem as bolas de argila, as pedras, a areia, a terra adubada, água, sol, luz e conversas constantes de encorajamento. Mas não vai. Cresce até certo ponto e é isso. Já recorri à ciência, religião e conversas mas elas, as cebolinhas, não ultrapassam aquele ponto. E não importa a forma como elas chegaram até mim: sementes, mudas compradas na feira, ganhadas de alguma amiga e ou cultivadas em água. Elas empacam, não crescem.
Na sexta-feira, tive que sair de casa para cobrir uma ação. Sou jornalista. Entre as fotos e entrevistas e alguma euforia de depois de semanas ter saído de casa, me deparo com um vaso semi abandonado de cimento. A pintura estava gasta, havia pedaços quebrados e a terra não parecia tão boa mas, do centro dele, subia uma linda e verde e vistosa muda de cebolinha. Firme. Respirei fundo e aceitei.
Mentira. Cheguei em casa e refiz meu vaso de cebolinhas com palavras gentis e carinhos enquanto pensava que lhes devia algum exemplo. Cá estou, escrevendo sobre minha quarentena e entregando todos os trabalhos que deixei acumular esses dias. Não sei como será amanhã. Não sei até onde minhas mudas de cebolinha e eu poderemos chegar. Mas seguimos aqui. Em quarentena.
Fabrina Martinez é jornalista, escritora, poeta, mestre em literatura pela UFMS e mediadora do Leia Mulheres Marília. Em 2020, lançará sua primeira novela pela Pólen. Segue cumprindo o isolamento social com a filha adolescente e uma cã idosa.
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