Texto de segunda
O dia foi longo, começou e nunca mais terminou. Logo pela manhã pesquei no céu azul do parque dos alagados três criaturas voadoras. Janaína me disse que naquela região estavam extintos. Passei por mentirosa. Ia discutir, mas me perguntei se puxar do céu azul criaturas voadores pelo anzol não machucaria e tive pena. Achei melhor que me pensassem mentirosa. Eles ficariam livres e eu nunca mais terei de acordar cedo pra isso.
Em casa uma das crianças caiu do pé e tive que tomar muito cuidado para não se desmanchasse em minha mão enquanto tentava colocá-la novamente dentro da flor, onde terminaria de crescer. Não fui eu que plantei esse pé aqui, mas não tive coragem de cortar.
Maria Joana me disse quando cheguei no trabalho que vai se plantar. Mas ela não sabe o que diz. Não sabe o risco que é nascerem mais dela. Se apagar é o mesmo que se multiplicar. É devastador de toda forma. Me contou, pois queria alguém pra cuidar do seu cultivo de pragas. Precisa cuidar para que as rosas não nasçam no quintal da empresa e destruam tudo.
Na pressa nem almocei. Dei uma volta saindo do portão e entrando novamente e encontrei no portão o palhaço que nos últimos tempos vivia a chorar. O problema é que quando me via tentava voltar a sorrir. Fiquei constrangida e corri de volta à minha mesa.
Na repartição nosso trabalho consiste em comer papéis. Damos um fim em qualquer processo, pedido de divórcio, contrato de locação, multa e bilhete de amor. Ingerimos de modo que nunca mais possam ser recuperados. Nossos clientes fazem piadas sobre aquela merda de contrato que nunca existiu. Não temos direito a vale alimentação, mas os banheiros são individuais. A pior função é a do fiscal.
Por causa da bebedeira no fim de semana meu desempenho foi fraco hoje. Só uma multa de trânsito e um grande processo cheio de termo jurídicos. Acredito que a palavra consuetudinário não me faz bem ao estômago.
Religuei a televisão quando entrei em casa e vi que meu porquinho-da-índia estava tentando comer uma das crianças que tinha caído do pé. Odiei que ele não tivesse feito isso antes de eu chegar, porque se eu não visse não saberia. Acabei rancando dele, ainda estava inteirinha e podia vingar. Taquei de volta na flor. Eu sei que Florinz é apenas um, mas quando bate a luz ele vira três. Por isso parei de pagar a luz. Multiplicam o que vejo e eu não sei o plural de porquinho-da-índia pra chamá-los.
Tenho usado fogueira pra resolver a falta de luz. Cada dia algo diferente pra queimar. Já foi minha mesa, minha poltrona e algumas roupas. Eu me arrependi mesmo de ter queimado aquela carta de desconhecidos que achei na rua. Guardava junto com as fotografias que achava pelo chão. Não é que tenho sorte em achá-las. Se você andasse olhando pro chão também as veria.
Não achava minha meia do par roxo. Decidi botar fogo no quarto e acabou que perdi de vez. Menos mal. Não gosto de pares faltando. Aproveitei as chamas pra assar espetinhos e fazer minha janta, mas agora preciso limpar as cinzas do que sobraram. Talvez eu ganhe um novo par cinza, quem sabe?
Florinz fugiu de casa. Ele se assusta com fogueiras ou é isso que ele quer que eu pense. Sempre volta pela manhã, com pelos faltando pelo corpo e um sorriso estranho no focinho. À luz do sol ele é só dois. Ele e seu sorriso.
Ainda bem que essa semana tem feriado. Talvez eu me plante também.