Solúvel
“Geppetto, sentindo-se olhado por aqueles dois olhos de madeira, e quase magoado, disse com tom ressentido: ‘Grandes olhos de madeira, por que olhais para mim?’. Ninguém respondeu.” Collodi
Premeditei o meu crime para sexta-feira, usei o banco de horas do trabalho, avisando que precisaria resolver problemas familiares com as crianças, para poder ter a manhã livre e pôr em prática meu plano sádico. Nunca uma falta ao trabalho foi tão mal aproveitada, iria precisar faltar porque as crianças pegaram piolho pela terceira vez em menos de seis meses. Não era provável, mas foi possível, como a vida. Ter filhos é ver várias coisas que você fala desaparecerem no universo como se nunca tivessem sido ditas, pior que ser casada, por incrível que pareça. Em todo caso, é o que temos para hoje. E dessa vez decidi tomar uma medida dura. Qualquer mãe de quatro crianças, se não fizesse o mesmo que eu, com certeza ao menos entenderia a minha situação. Eu estava decidida a dar uma lição definitiva para a questão piolho na minha casa. Na minha situação, chega-se a um ponto dos nervos em que você praticamente se vê puxando pela casa crianças pelos cabelos tomada pela fúria, uma irritação que senti com poucas coisas nessa vida, então é melhor fazer algo antes que as coisas terminem assim. Ao longo desses meses foram administrados comprimidos, xampus e horas com o pente fino na mão tentando fazer a pessoa simplesmente ficar parada para colaborar, cada sessão de tortura acompanhada por uma missa em que eu implorava que tomassem mais cuidado, sem resultado. Essa palhaçada acaba amanhã.
27 de Agosto de 2010
Sexta-feira
Sempre fui uma pessoa ansiosa, me aceito e me entendo assim. Por exemplo, há anos, enquanto passo o café pelo coador, faço com a sobra da água quente um copinho de café solúvel para poder tomar assistindo as gotinhas chatas descendo depois de viradas café, Deus me livre de ter paciência com isso. Lá atrás, quando o ritual começou, o fazia por puro ódio em saber que assim que ficasse pronto teria que engolir o café já atrasada em desespero de tanto tempo que esperei primeiro a água ferver, depois passar pelo filtro, depois requentar porque esfriou, hoje em dia, me sinto alguém que está acima desse tempo de espera, estou fazendo café, mas faço o meu antes, eu estou no controle, penso.
Assim que o marido saiu para trabalhar, levando com ele duas das crianças para a escola, eu já sabia o que aguardaria as duas meninas na cama. Como elas são menores vão à escola só à tarde, o que é muito, mas muito conveniente para os meus propósitos, se uma não souber o que houve com a outra o escândalo será menor na hora de ser atingida pelo inevitável. Tv ligada para abafar os sons, vamos ao serviço. Acordei Agnes chamando para banhar e “passar o pente fino”, Aline ficaria para depois, tem o sono bem pesado e pode ser que não ouvisse os gritos da primeira pela casa. Agnes, sem desconfiar, passava o xampu na cabeça, aquele mesmo que ela usava todos os dias, eu mesma não acreditava que ela não tinha visto nada de estranho, claramente era uma armadilha, mas ela nem desconfiou quando entregou a cabeça aos meus cuidados. Na escora, eu já estava com a tesoura na mão. A primeira mecha foi bem rápida, bem grande e bem rente, para não dar margem de salvar nada, quando ela caísse em si já teria acontecido. Assim foi. Quando ela viu o cabelo caindo ao seu lado, tentou lutar, soltou um grito, que foi abafado por um forte puxão no braço, acompanhado por um “EU TE AVISEI”. Chorou, mas argumentei que me deixasse terminar porque senão ficaria com o cabelo torto, já tinha cortado, já era. Cortei bem baixinho, joãozinho. Eu estava cansada desse inferno de piolho na minha vida, eu peguei piolho, mais de uma vez esses tempos, olha bem a minha idade para ir trabalhar cheia de piolhos na cabeça, agora acabou, quem tem piolho não vai ter cabelo mais. Quase o mesmo se seguiu com Aline, com a diferença que essa conseguiu uma falha considerável no lado direito, ela lutou bem mais, ameaçou se jogar no chão, ameacei amarrar, quase foi amarrada. Uma das coisas que aprendi tendo filhos é que você jamais pode fazer uma ameaça que não esteja disposta a cumprir, eles agem como se esquecessem as coisas o tempo todo, mas só mudaram o foco de importância.
Estou esgotada. Foram só duas, mas foi suficiente para que, após meu ato de violência, eu estivesse no meu limite, trêmula de raiva e contrariedade diante de duas meninas chorando em desespero porque cortei seus cabelos. Berrei uma ou duas coisas sobre higiene e cuidados pessoais, especialmente a parte de prender os cabelos, de não ficar encostando em todo mundo, de pelo amor de Deus colaborarem com a idiota aqui que trabalha feito um cavalo para passar o final de semana com a cabeça empapada de veneno passando o pente em quatro crianças depois de distribuir vermífugo para a casa toda. Pareceram aceitar, agora era esperar o horário do almoço. O segundo round seria infinitamente mais difícil porque veriam o que aconteceu às duas irmãs e seria possível ter que correr pela casa atrás de criança para conseguir cortar, ninguém merece esse circo, mas é isso, todo mundo pegou, todo mundo vai ter que cortar, não só as mais frágeis, que não conseguem escapar à minha força. Vai ser uma sexta-feira diretamente do inferno essa. Alguns dias vou dormir com a sensação de que demoram demais para crescer.
Dito e feito, foi horrível, em todos os tons de horrível que algo pode ser capaz de ser. Sinto dores em todo o corpo devido às contrações de força, resistência e franca desolação. De alguma forma, em algum momento, por algum motivo o descontrole tomou posse de mim, em lapsos nem mesmo era eu ali. A Daniela já tem sete anos. Ainda consegui esconder as duas meninas no quarto sob fortes ameaças. Quando chegaram, mandei ambas imediatamente para o banho por causa dos piolhos, certeza que a essa altura eu ainda tinha o olhar transtornado, um pouco louco, elas, revirando os olhos, obedeceram. O falecido ainda se deu ao trabalho de perguntar pelo almoço porque estava com fome, eu só olhei, ele entendeu e seguiu.
Nosso show seguiu de acordo com o previsto. Não sou capaz de sondar o que um ser humano normal sente ao ver a mãe furiosa com uma tesoura na mão, não há muito espaço para debate.
Depois de tudo feito, comemos silêncio, rostinhos virados para baixo com lágrimas fininhas escorrendo até o queixo. Eu só engoli a refeição para não parecer que estava como estava. Lavei a louça e me sentei para um café antes da faxina no banheiro, que tinha ficado daquele jeito. Enquanto as meninas recolhidas no quarto mostravam umas para as outras o estrago, o falecido veio à minha procura na cozinha, me virei e ele estava lá me olhando assustado, meio encolhido, eu sentada perguntei “o que foi agora?” e a resposta veio, “mamãe, eu não quero isso”, joguei o corpo para trás, passei as mãos nos olhos e ele, prevendo o vulcão que havia despertado veio rapidamente até mim, sentou-se no meu colo e disse “é que eu tava olhando no espelho com a Daniela, ela não virou menino, só eu e eu não quero ser assim, eu não quero ser menino”. Não consegui fazer mais nada além de perguntar como assim. Antes de mais nada, que fique claro que eu sou uma mãe, conheço os meus filhos, não sou uma retardada, é claro que eu já havia percebido que ele era diferente, e sim, é claro que eu já estava preparada para o dia que ele viesse me informar que é gay, tenho amigos que são, as crianças sabem, eles visitam a nossa casa, não é um problema, mas espera aí. Como assim?
O choro aumentou para pequenos ganidos e com a cabeça sempre baixa ele falou. Eu juro que não consigo me lembrar as palavras porque a verdade é que eu não ouvi, eu estava caindo muito fundo no buraco que se abriu dentro de mim. E dentro desse buraco eu revirava memórias da minha maternidade eu tentava encontrar onde eu tinha perdido o bonde da história, eu tentava me me lembrar de coisas como um dia ele ter tido o cabelo tão curto quanto está agora, nunca teve. Tão lindas as ondinhas do cabelinho que desde pequeno acho, ao menos pelo que me lembro agora, o cabelo mais curto que ele já teve foi uma tigela um pouco crescida, às vezes chegava aos ombros e eu levava a caravana toda pra cortar, sempre em eventos coletivos, cortava de um, cortava de todas, algumas vezes em casa. Eu tenho muita coisa para fazer, eu não tenho tempo para ficar medindo cabelo de menina e cabelo de menino, eu trabalho. Mas como pode ser possível que ele nunca tenha se dado conta que ele era menino, como pode ele realmente achar que a única diferença entre ele e as meninas é que a Aline é uma chata? Ou o que ele achava era uma outra coisa completamente diversa que eu mesma não sei. Isso porque eu sou a mãe, imagina se não fosse…
Nas minhas memórias são quatro filhos, três meninas e um menino é detalhe. Para mim se resume a muito trabalho, alguns dias exaustivos, bastante afeto, claro, mas o grosso é bem cansativo. Para mim não tem como eu me ater a mazelas do tipo um ser mais ou menos agressivo, no caso Daniela, ou ser mais ou menos delicado, porque eu estou ocupada demais garantindo que escovem os dentes ou se são pessoas minimamente decentes, se não estão se arrebentando no soco por algum brinquedo novo, ou coisa que o valha. É óbvio ao menos para mim que eu não vou ficar horas na loja analisando uma roupa pra ver se o personagem é de menino ou menina para arbitrar quem veste, quem tem tempo para perder com uma coisa dessas? Ele é o segundo, já deve ter reaproveitado várias roupas da Daniela, eu não sou dona de uma confecção, eles crescem logo, ficam em casa a tarde inteira, enfim. Eu sou uma mãe, estou mais preocupada com a pilha de roupas com resto de comida que eu tenho para lavar. Quem vai se importar se ele estava usando uma camisa ou um shorts cor de rosa ou azul? Além disso ele e a Dani são tão grudados, se cuidam tanto, dividem quase tudo… Um eco começou a soar dentro da minha cabeça “Ave maria, cheia de graça, o senhor é convosco…” Como é que eu vou reparar como ele se veste, ou com o que ele brinca, são quatro filhos, os brinquedos são de todos e um monte, olha a minha cara de quem vai ficar fiscalizando quem brinca com qual boneca ou carrinho ou sei lá o que que está jogado pela casa para me irritar?
Enquanto eu caía naquele infinito ele me perguntou “o que a gente vai fazer mamãe?” fungando o nariz, “Tomar cuidado para não pegar piolho de novo senão eu RASPO, já falei” e o aconcheguei no meu pescoço abraçando com um pouco mais de força, eu não sabia nem por onde começar. Eu acariciava as suas mãozinhas pensando que o meu filho que até aquela manhã tinha uma vida toda pela frente parecia que numa virada repentina agora tinha uma expectativa de vida mais curta do que a que eu tenho nesse momento. Meu Deus do Céu, onde que vai arrumar emprego agora? E já veio vindo na cabeça um “creio em deus pai todo poderoso, criador do céu e da terra….” São oito anos da vida de uma pessoa que eu não sei onde foram parar, é aquela criança que foi a segunda que eu segurei no colo, alimentei, banhei logo depois da Daniela, eram duas crianças e eu mal tinha tido tempo para me acostumar com a primeira. Eu me sentia perdida porque no fundo de mim eu sabia que havia sido a minha mão que disparou o gatilho daquela arma onde estava a bala do destino do meu filho e que depois daquela tarde ele não existiria mais. Era uma nova pessoa para ele e para mim quem estava ali no meu colo e claramente nenhum de nós tinha a menor ideia de como agir então. Eu matei o meu filho quando eu cortei o cabelo dele, porque em choque ele olhou no espelho e encontrou uma pessoa que ele não é. E o que a gente vai fazer agora?
“Fulano” falei nome do falecido “cabelo, cres-ce” sendo que eu dentro da minha própria cabeça queria me estapear porque era ób-vio que não foi isso o que me foi perguntado. Mas era o que dava para dizer naquela hora. Olhando aquela carinha desconhecida vieram na minha cabeça as várias vezes em que, indo para a feira domingo, eu desviei de poça de sangue no Arouche. Todo mundo sabe sangue de quem que tem lá no final de semana, a gente sabe como essas pessoas morrem. Meu filho morreu, aquela criança que eu achava que vivia na minha casa não existe mais, mas o que vai ser dessa criança agora? Voltar atrás no tempo para de manhã não dava mais, então eu fiz o que qualquer pessoa de bom senso faria, tomei mais café, aquele dia todo devem ter sido litros.
Seja como for eu sou uma mãe e eu tenho quatro crianças para jantar daqui a pouco, coloquei a criança de pé, repeti que cabelo cresce e falei pra ir com as irmãs, dando um beijo no rosto para me despedir do filho que eu não teria nunca mais e, ao mesmo tempo, meu primeiro beijo na criança que estava ali na minha frente pela primeira vez. Puta que o pariu, que sexta-feira.
PS: Sim, eu também acabei cortando o meu cabelo, por justiça e porque eu já não tinha mais forças para lidar com o problema piolho.
PS2: O espetáculo da sexta-feira quase foi motivo para divórcio, porque aparentemente o pai não gostou nada de chegar em casa e ver várias “caras de menino” sentadas à mesa. Foda-se, eu tenho coisa demais para fazer, eu crio quatro crianças.