Sobre o Nome
Este não é um texto sobre lugar de fala, só uma percepção de algo que acontece à minha volta e de como isso ativa memórias afetivas em mim, então, por favor, não encham meu saquinho.
Nunca consegui me identificar direito com o nome que me foi dado. Minha mãe sempre conta uma história acontecida logo na primeira semana no prezinho quando ela foi chamada na escola porque, segundo a professora, apesar de eu não parecer ser uma criança “travada” ela estranhou que quando chamava pelo meu nome eu não atendia e perguntou para mamai se havia alguma coisa de errado comigo. Bom, a minha mãe explicou que a vida toda havia me chamado pelo meu segundo nome e por isso, de uma certa forma “eu não sabia” que meu nome era Flávia, por sempre ter sido chamada por Claudia, mas que chegando em casa ela me explicaria a situação e o problema estaria então resolvido. Assim foi. Ainda que até hoje eu às vezes ache que a partir desse episódio eu me tornei uma pessoa permanentemente confusa, enfim.
Mesmo assim, sempre ficou aquele estranhamento de que por mim me chamariam apenas de Claudia e já estaria muito era bom, afinal toda a minha família e amigos da infância mais remota me chamavam assim (é o nome pelo qual me chamam até hoje, inclusive)
Me peguei pensando nisso esses dias. O local em que trabalho, o CCLGBT, está promovendo ao longo do mês de Janeiro um mutirão para retificar os nomes de mulheres transsexuais, travestis e homens trans e, dia sim outro também, o advogado que trabalha conosco comenta das expressões no rosto das pessoas quando entregam toda a documentação a ser encaminhada para a defensoria. Sempre comenta do quanto parecem, às vezes emocionadas, às vezes aliviadas, às vezes alguma emoção que não se descreve mas que reflete algo que faz o trabalho que se desenvolve lá fazer sentido.
Assim que fui trabalhar no CCLGBT soube do suporte que era dado para a retificação de nome e sempre pensei nela, a retificação, como algo que buscava evitar a exposição pública de uma intimidade, da identidade de gênero das pessoas. Mas cada vez mais tenho refletido e nem de longe se resume a só isso.
Meu nome, mais que a exposição daquilo que me leem socialmente, no caso mulher, também diz de diversas outras coisas sobre mim e sobre as escolhas que minha mãe fez ao me nomear. Quando ela me deu o meu nome, ela decidiu que eu era dela, que a partir daquele instante eu seria a filha dela. Sou adotiva, então não houve, do ponto de vista biológico, uma gestação na qual ela produzisse sonhos a respeito daquele sujeito que estava por vir, onde ela projetasse no nome da criança por vir seus desejos. O ato de me dar um nome queria dizer que a partir daquele instante ela seria eternamente responsável por aquilo que viesse a acontecer na minha vida, passei a ser um problema dela e estar aos seus cuidados.
Eu tenho um nome, um nome que eu não escolhi, um nome em relação ao qual não sinto nem orgulho nem sinto vergonha (hoje até gosto, meu nome de imperador romano https://www.colegioweb.com.br/b…/flavio-claudio-juliano.html), um nome pelo qual eu não lutei e que não reflete muita coisa sobre o que me tornei ao longo desses anos, um nome que me foi dado e eu acolhi. Aí eu olho para esses meninos e meninas que vem até aqui após um longo e, muitas vezes, penoso processo de identificação e construção de um sujeito que se coloca resistente em uma sociedade que é um moedor de carne humana toda vez que o assunto é gênero. A decisão sobre o nome e o reconhecimento social do mesmo está na ponta burocrática de um processo que atravessa toda a vida de uma pessoa.
Ouvir o próprio nome em alto e bom som em uma sala de espera e saber que todos olharão instintivamente para saber quem foi a pessoa chamada, escutar o próprio nome da boca daqueles que amamos em um momento de intimidade, seja como uma carícia ou um alerta, ouvir o próprio nome mentalmente ao refletir sobre algo, falar o próprio nome quando lhe é perguntado. São todos desdobramentos sonoros de uma representação simbólica cujo impacto é incomensurável, ser visto é ser reconhecido e, nessa perspectiva, ser nomeado é saltar para realidade e assim, ser um sujeito completo, algo que ultrapassa o que pode parecer um mero processo burocrático de designação legal.
Diferente de mim, cujo nome me foi dado, estamos falando de sujeitos e sujeitas atravessando um longo processo de luta por reconhecimento onde o nome simbolicamente significa uma quantidade tamanha de coisas que eu nem saberia exatamente por onde começar, mas posso garantir, significa muito. Muitos autores já escreveram longamente sobre as consequências simbólicas da atribuição de um nome a algo e alguém, desde a bíblia cristã quando a Adão é incumbida a tarefa de dar o nome a todas a coisas vivas e não vivas e isso marcou o papel dele sobre a criação de Deus. Adão era aquele que dava nome às coisas e elas se relacionavam com ele num vínculo eterno de ser aquele por meio do qual elas passaram a saber dentro de si aquilo que eram. Deus esse que aos homens vetou de pronunciarem o seu nome. Quando, no livro do êxodo, Moisés pergunta a Deus qual seu nome, tem como resposta três palavras “Serei Quem Serei”, esse mesmo deus, conhecido como Adonai, que quer dizer “Meu Senhor”, muitas vezes no antigo testamento cumpre a função de um nome, mesmo sem sê-lo. A interdição à pronuncia de seu nome se articula com um pensamento antigo no qual pronunciar o nome de alguém era o mesmo que entrar em contato com a sua mais profunda natureza, algo que não seria acessível aos homens. A sua verdadeira natureza também é a busca de Frankenstein, a criatura, que nunca teve um nome e por toda a sua existência perseguiu o médico que o criou em busca de saber quem era, sem sucesso e, pela falta do mesmo nunca pôde estar em paz consigo. A psicanálise, por meio de Lacan e de Freud, Borges, com o Aleph, textos clássicos da literatura e filosofia oriental, todos, instigados e profundamente preocupados com a questão do nome e de suas consequências.
Tudo, absolutamente tudo em torno de um nome. Até mesmo Alice, quando interrogada pela lagarta, em vez de simplesmente lhe dizer seu nome, refletiu um instante sobre o que poderia significar ser quem era e o quanto a questão desconcertava a garota, mudando tantas vezes durante aquele dia. Não é só um documento, não é só uma formalidade burocrática, é um nome que passa a ser seu, uma nova relação que se constrói com um sigo mesmo que assume a função de criador e criatura, é um processo lindo de automaternidade de um sujeito que vem ao mundo para conhecimento de todos.
>>>>>>>>> A lagarta olhou para Alice e Alice olhou para a lagarta >>>>>>>>>>>>>>
A Lagarta e Alice ficaram olhando uma para a outra por algum tempo em silêncio. Finalmente, a Lagarta tirou o narguilé da boca e se dirigiu a ela com voz lânguida, sonolenta
“Quem é você” perguntou a Lagarta.
Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu, meio encabulada “Eu… eu mal sei, Sir, neste exato momento… pelo menos sei quem eu era antes quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então…”
“Que quer dizer com isto?” esbravejou a Lagarta “Explique-se!”
“Receio não poder me explicar”, respondeu Alice “porque eu não sou eu mesma, entende?”
“Não, não entendo”, disse a Lagarta.
“Receio não poder ser mais clara”, Alice respondeu com muita polidez, “pois eu mesma não consigo entender, para começar; e ser de tantos tamanhos diferentes em um só dia é muito perturbador.”
“Não, não é”, falou a Lagarta.
“Bem, talvez ainda não tenha descoberto isso”, disse Alice, “mas quando tiver de virar uma crisálida… vai acontecer um dia, sabe… e mais tarde uma borboleta, diria que vai achar isso um pouco esquisito, não vai?”
“Nem um pouco”, respondeu a Lagarta.
“Bem, talvez seus sentimentos sejam diferentes”, concordou Alice, “tudo o que sei é que para mim isso pareceria muito esquisito”.
Bibliografia
CARROL, Lewis. Alice: Edição Comentada e Ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar. 2013