Reflexões de Uma Quase Educadora
Ensinar foi a experiência mais desafiadora da minha vida, para além de qualquer cliché.
Explico:
Ano passado, quando a Rede Cidadã Multicultural assumiu a tarefa de realizar, junto com o CCLGBT, o Transcidadania, passamos por um processo de recontratações, onde o serviço não permitia longas pausas para a busca de profissionais, e eu, que sempre amei escrever, me dispus a dar aulas de redação. Nunca me vi em condições de ensinar história, porque sempre me avaliei como uma historiadora medíocre e com pouco tesão de falar sobre a história como algo urgente para a vida de alguém (me julguem), mais que isso, quem me conhece sabe que tenho temperamento agressivo e intransigente (estou trabalhando isso) e, na minha visão, esse perfil tornaria as aulas uma tortura para ambos os lados, ensinar requer paciência e flexibilidade, especialmente em uma sala multisseriada, onde cada educando passa por um momento completamente único.
Dessa forma, acordei e me preparei para dar aula de redação, o que me fez confrontar de forma metodológica o processo de produção do texto escrito, algo que para mim sempre foi um ato natural. Estabeleci em pouco tempo que escrever passa por dois movimentos indissociáveis, primeiro ter um hábito de leitura intenso e com uma interpretação de texto ativa e reflexiva, e além disso, para escrever entendo que precisa haver um sujeito que reflete sobre si e sobre o espaço à sua volta.
Todo texto escrito é o ato de um sujeito que reflete sobre algo, a escrita não é um gesto mecânico de organizar palavras em uma folha de papel (numa tela). Assim, esse ano, mais segura em minha função de entrar numa sala de aula e ministrar uma oficina, e enquanto tal um lugar onde se objetiva produzir algo, uma oficina é o exercício de um ofício, iniciei um processo de ensinar a produção do pensamento escrito tendo como base do trabalho a reflexão sobre o eu em suas tantas esferas, social, pessoal e, sim, também, ficcional. Todos somos sujeitos de um eu ficcional das nossas imaginações, só não imagina realidades possíveis quem está morto.
Todo ato de escrever envolve uma alma que se expõe para o mundo, para tanto é necessário que o sujeito dessa alma se coloque em contato com ela para então refletir, escrever é um espelhamento, uma expressão de algo que se pensa e sente. Consciência e alma juntos se posicionando e expondo de maneira ousada, não a toa tantas pessoas recuam e se protegem diante da folha em branco, escrever é organizar ideias e sentimentos e requer respeito e cuidado consigo, coisa tão complicada nesse mundo moinho em que todos vivemos.
Falamos em relacionamentos abusivos e alternativas a estes, falamos na origem dos nossos nomes, fantasiamos sobre versões imaginárias para eles, descrevemos o nosso nascimento como instrumento para refletir sobre a literatura de princípio e de fim, lemos João Cabral de Melo Neto, lemos Borges, lemos Clarice Lispector, lemos letras de música, atentas e atentos a cada frase e a esse movimento fantástico que a literatura tem de nos dizer algo que não é diretamente dito, mas encaminhado por aquilo que não se diz (como todas as coisas que na verdade queremos dizer nessa vida). Tentei inspirar, atear fogo em debates espinhosos, dei broncas, pedi “juízo” e, por dias, vivia um processo de recolhimento, para que o que chamamos de “preparar aula” trouxesse algo que causasse espanto, impacto, comoção, para que essa alma em agonia encontrasse aquilo que um professor muito querido da graduação chamava de “sensibilidade para a palavra”. E o que li nos exercícios em muitos dias foi uma escrita criativa, vivaz, cheia de conflitos e de temporalidades se debatendo, procurando um papel para existir, textos normalmente curtos, mas cheios de uma vida tocante e forte.
Convivi diariamente com o medo de incitar um movimento de olhar para dentro da garrafinha da própria alma e encontrar lá dentro estilhaços de uma alma despedaçada por um mundo que, intolerante e violento, insiste na tentativa incansável de exterminar as minhas meninas e os meus meninos. Encontrei almas repletas de riqueza em meio a narrativas, verbais durante o debate e na forma escrita, que muitas vezes traziam lágrimas, espanto e riso. Nesse sentido, fomos sempre vertiginosamente bem sucedidos.
Neste processo de conhecer-se e construir uma narrativa sobre o que ali se encontrava eu passei a me reconhecer novamente em minha paixão da infância, o ato de escrever como algo dado a pessoas muito importantes (como dizia Clarice), recordei o que via de tão mágico em alguém que escreve um livro, um poema, um bilhete, uma carta a alguém. Eu cresci e me modifiquei em tantos momentos, risos, abraços, broncas e cafés que tomamos juntas. Infelizmente, nesse ano de 2018 não houve tempo para assistirmos a filmes junto, experiência essa que, além de discussões, no ano passado, trouxe também lágrimas a mulheres já endurecidas pelo calvário de viver uma vida constantemente dessensibilizada por um mundo que as vê como coisas sexuais ou monstros. Parecia aula, parecia companhia, parecia só um filme, mas na realidade foi a minha trajetória de tentar entender qual a grande dificuldade no esforço de ensinar a alguém algo que além de urgente, relevante, mesmo sabendo que não estava ensinando nada que pagaria o aluguel ou que colocaria um prato de comida sobre a mesa (sejamos sinceros, não estamos salvando vidas).
Todo gesto de ensinar algo a alguém é um ato de solidariedade, é um ato de lançar-se em direção ao outro e transformá-lo de alguma maneira, em alguma direção. Não se compara dois amores, ainda assim, meu carinho inseguro em relação à história jamais pôde competir com meu amor pelo desenho ou pela escrita. Lugar em que sempre me vi e me senti boa, competente, capaz.
De alguma forma misteriosa, meu amor pela escrita e minha reflexão constante para investigar como eu faço para escrever contagiou as minhas horas de aulas, os olhares atentos (às vezes distantes em reflexões privadas as quais me foi negado o acesso), os sorrisos amorosos, as letrinhas tão íntimas e tão familiares depois de um tempo. Lembro-me com saudade do que senti a primeira vez que me vi amando alguém, diversas vezes, ao longo desse ano de trabalho educacional, me peguei sentindo novamente aquele amor. Diversas vezes lutei para amar menos, para me envolver menos, no que fracassei miseravelmente, meu coração se partiu em dezenas de pedaços e estava dia e noite com cada uma e cada um, um amor preocupado, um amor mesmerizado pela beleza do ente amado, um amor bravo, em disputa entre mim e o mundo e outros problemas que eu tentava ofuscar nas duas horas de aula em que eu pedia atenção, um amor em todo seu ciúme e apego. Ensinar é trazer para junto de si e caminhar junto. Propor-se transformar algo que não está nem mesmo perto do nosso alcance e lutar contra esse real intransponível.
Ao longo de um ano aprendi uma forma totalmente nova de amar e de devassar a alma de pessoas, a despeito de qualquer resistência ou timidez. Foi mágico, intenso, e será sempre uma fase inesquecível da minha vida. Cada uma das minhas meninas, como as chamo, e dos meus meninos, em um lugar para sempre intocável, prontos para se transformarem em personagens de contos, romances, poemas. Escrever é expor parte da alma do sujeito que escreve, e a minha carregará para sempre alguns dos rostinhos que me olhavam toda a semana por duas horas inteiras em que tocamos os corações umas das outras e sentimos o que havia dentro.
Um conselho, tenham alunos e alunas, talvez não sejam tão fenomenais quanto os que tive (risos) mas não desistam de procurar por amor nesse processo. Mas sigam se desafiando.