Pôncio Pilatos comprou um celular
E lá estava ele, com seu manto alvo muito bem lavado pela Conceição, o fascio bem preso à cintura por um cinto de couro, e sua túnica púrpura como seus olhos quando contemplam o pôr do sol escondia o aparelhinho novo. Fez o face e o tinder, e estava de marcar um encontro com um lindo mancebo, tão lindo como aquelas fotos de revista (o pobre Pilatos ainda ia descobrir o poder sofístico do photoshop), e começou a buscar no google “young boys” como que sem planejar, diferente das meditadas sentenças que sentenciava contra qualquer revoltado, alinhando o pensamento com a lâmina do machado envolto dos fascios, e esperando dos seguidores do sentenciado a atitude das varetinhas, única forma de não serem também cortadas, quando chegam os soldados com um homem magro como um louco e fedendo como um miserável entre miseráveis. Mas tinha algo em seus olhos firmes que rouba todos os seres, como se todos fossem um só nele, mas Pilatos não viu, ninguém viu, Pilatos ainda olhava o encontro a se marcar no tinder, ainda olhava em sua mente a pornografia que ia buscar em seguida.
Suspirou e perguntou “Que é?” do modo mais displicente que pôde, ainda que tenha parecido a todos ali o dizer mais imponente que já ouviram em toda a vida.
– Este homem causou um tumulto na igreja, bateu no pastor, e expulsou todo o povo de lá, gritando coisas sobre o comércio, coisas que ninguém entendia. Daí foram dar queixa lá na delegacia. Quando chegamos, lá estava esse homem, calado, com os braços abertos como se estivesse já na cruz…
Pilatos finalmente tira os olhos do celular, não para olhar o futuro condenado, mas olha ferozmente para o polícia que segurava as cordas que amarravam aqueles braços sujos, finos, machucados.
– E não podiam ter resolvido a situação ali mesmo na hora? Precisavam vir me atormentar com essa questãozinha?
O soldado arregala os olhos e a voz quase que não sai, começa pra dentro, como quando era um adolescente e não sabia responder o que o professor perguntava, a voz sai falhada e fina, mas logo recupera em aparência a maturidade que conquistou nos anos seguintes.
– É… Me entenda, doutor… Eu não podia dar um alto de resistência… tinha todo o povo lá fora…
– Fff… Está bem. Vamos logo com isso.
Os olhos tentam digitar o local do encontro disfarçadamente, mas logo desistem, e o dedo fica ali imóvel. É então que o meliante fala.
– Pode escrever a mensagem, eu espero.
Pilatos fica furioso.
– Insolente! Esse daí não sabe seu lugar! 40 chibatadas!
E dessa forma a concessão que o réu deu ao juiz foi feita, e Pilatos, graças a ela, pôde marcar seu encontro futuramente frustrante. Volta o prisioneiro, que já parecia menos louco, seu corpo se contorcia menos, como se já estivesse mais resignado com tudo que seu destino de homem pobre tinha escrito.
– Fico feliz que tenha marcado seu encontro. Mas fico muito triste por você, por todos.
Os olhos. Eles continuavam os mesmos, como se lá no fundo morasse toda a existência, toda a dor do mundo e tudo que é bonito. Pilatos quase que se torna o brilho branco naqueles olhos negros, quase se torna nada do que achava que era, quase se torna tudo naqueles olhos, mas segura firme o celular com a mão esquerda, e com a direita segura o fascio de forma tão imprudente que se corta, lembrando que tem um corpo, e que está sentado diante de um réu.
– E por que você está triste por mim e pelos outros, e não por você?
– Sabe, você devia largar isso, porque te machuca, assim como machuca todos nós.
Nós… Ele falava de seus próprios olhos? A mão ainda firme no fascio escorria sangue.
– Como… Como sabe que me cortei?…
– Não falava da sua mão direita, que só tem um símbolo e uma ferida. Falava da mão esquerda, que faz esse símbolo virar realidade.
– O celular? Não vai me falar sobre meus dados sendo roubados?…
O louco ousa sorrir.
– Você sabe como é feito esse aparelho? Vidas na África sendo quebradas como as pedras que quebram sem parar, vidas na Ásia amarradas nos fios que amarram com solda, até que te amarram também, todos amarrados pelo mesmo fio dos reinos que escravizam gente…
– Ora, mas eu não escravizo ninguém! Comprei o celular com meu salário, do suor do meu trabalho!
– O reino que garante seu trabalho é o mesmo que garante aquele trabalho. O celular é o símbolo da nossa geração. As varetas que não podem ser cortadas dependem de outras varetas cortadas. Mas elas não podem ver a lâmina afiada. Você pode tentar lavar suas mãos. Pode até cortá-las. Mas nada muda da realidade e de sua responsabilidade.
Os olhos…
– Mas é só um…
– É um celular que só funciona com todos os outros. A pessoa que você marcou o encontro precisa de outro celular para o seu celular fazer sentido. E assim por diante, até o mar de sangue, desespero, e luzes coloridas exigindo atenção…
Pilatos estava incomodado, porque era uma pessoa tão justa que não podia nem considerar que sua leviandade pudesse ser injusta e cruel, como aqueles que ele gosta de condenar. Levanta-se do pequeno trono e guarda com cuidado o celular no bolso que Dolores costurou em seu manto.
Lava suas mãos.
– Crucifiquem logo esse baderneiro.
Alguns dias depois, lá estava Pilatos de olhos púrpura, com uma camiseta com estampa fazendo piada em inglês com o darth vader e calça jeans colada, esperando o rapaz chegar, olhando o relógio de sol enquanto se encobria embaixo da tamareira. Pipi. Era o whats. Não, não era o garoto atrasado, era uma mensagem de sua tia, uma imagem colorida de um pôr do sol e escrito “SORRIA, POIS JESUS VAI VOLTAR”.
Assim como o sol ele ia voltar…
Era domingo.