Novíssimo Testamento
Maria de Nazaré era filha de Deus. Como qualquer pessoa. Acordava cedo para ajudar na casa. Limpava, lavava e cozinhava. Quando estendia roupas no varal sonhava com o céu azul e pensava na imensidão do mundo. Pensava que bem que podia o mundo virar de cabeça pra baixo e assim todo mundo cair direto para o céu. Sem julgamentos ou penitências. Com o mundo como é, pensava, o risco da gente cair direto pro inferno era grande demais.
José também era filho de Deus. Mas não era um laço familiar que impedia seu relacionamento com Maria. Trabalhava na carpintaria que herdou do seu pai. Sonhava em construir uma casa que não tivesse um só pedaço de madeira. Assim nunca seria chamado para consertar nada. Imaginava casas de metais, panos e até areia.
Maria e José se prometeram um para o outro. Iam casar como todos filhos de Deus devem fazer. O casamento iria transcorrer como todos. Eles acordariam cedo, ele iria trabalhar, ela ficaria em casa cuidando dos afazeres domésticos. Eles pensavam em ter filhos, afinal, a vida de um casal só é completa quando há crianças correndo pela casa. Mas depois da lua de mel, claro. Maria era virgem e pretendia ficar assim. Não era como Lilith, era pura e obediente.
Era costume naquela época os noivos se guardarem para seus respectivos cônjuges. E também era costume que as regras só valessem para as mulheres. José tinha seus casos por aí, era amigo da moça que fazia abortos na cidade. Sempre precisava mandar alguma mulher para lá. Mantendo as aparências, o noivado seguia lindo e feliz.
Gabriel era um anjo. Pelo menos na opinião da mãe de Maria. Ele e Maria eram amigos desde a infância e foi sempre tão respeitador o rapaz, tão lindo e cobiçado pelas garotas. Sempre pareceu, no entanto, estar acima de tudo que é mundano. Maria sabia que tipo de anjo era Gabriel. Do que só pode ter interesse por outros anjos, inclusive carnalmente.
Gabriel estava organizando uma grande festa. José não poderia ir, mas achava que tudo bem Maria ir sozinha. Era um cara pra frentex, segundo ele mesmo. Ele tinha o rabo preso, como dizem por aí, então uma festinha não seria nada demais. Até lhe daria uns créditos.
No dia da festa, regada de cerveja da melhor qualidade e pó, de não tão boa qualidade assim. Gabriel descolava as drogas com Rafael para que todos alcançassem os céus e pudessem desfrutar um pouco do deleite que ele conhecia tão bem. Gabriel sempre atestava ele mesmo a qualidade do pó, geralmente na barriga sarada de algum outro cara.
Espírito Santo era um amigo do dono da casa. Rapaz forte de pele morena, alto e de um sorriso encantador. O tipo de cara que você olha e sabe que foi mandado por Deus de tão lindo. Maria, sempre muito casta, não conseguiu resistir ao seu charme e com o nariz entupido e o passo cambaleante, ela foi parar num quarto vazio da casa. Talvez por ingenuidade, não pediu uma proteção. O sexo foi rápido, ela em pé, apoiada numa mesa, ele por trás, passando a mão nos próprios cabelos e se sentindo no controle da situação. Maria não sentiu dor, estava anestesiada pelos entorpecentes.
Gabriel acompanhou Maria até sua casa, poucos instantes antes do sol nascer. José havia passado a noite com uma de suas amantes e de nada desconfiava. Maria adormeceu assim que chegou a seu quarto, com as roupas da noite e a cabeça confusa. Acordou atrasada para os afazeres do dia e não se lembrava de muita coisa.
15 dias depois sua menstruação não veio. Tão regrada, ela nunca atrasava. Ficou preocupada, mas achou que era por causa da ansiedade do casamento que seria dali três meses. Mais dois dias e nada. Começaram os enjoos, a dor nas costas. Um dia Maria estava indo comprar pão, passou por uma senhora do bairro que diziam ser bruxa. Ela apontou para sua barriga e sussurrou em seu ouvido “tem uma criança aí dentro, e é um menino”.
Maria entrou em desespero. Estava noiva! Tinha flashes da festa de Gabriel, só lembrava vagamente de um homem com quem transara, que inclusive, a deixou bastante decepcionada em relação ao sexo. Achava que deveria ser uma maravilha, por tanto que parecia ser proibido, mas foi apenas sem graça. Diria que teve gosto de maça. E ainda por cima, tinha lhe gerado um problema.
Sem saber o que fazer, Maria rezou e se aconselhou falando sozinha, procurando mensagens do universo. Se trovoasse no meio daquela chuva, que olhava da janela, é porque não estava grávida. Esperava segundos até virarem minutos e nada. Se arrependia depois. Como era besta de esperar sinais assim da natureza. Não saberia.
Em alguns dias veio a aceitação. Maria elaborava planos de contar tudo para José. Ele ficaria bravo no começo, mas acabaria aceitando. Afinal o amor supera qualquer barreira. Pensava no berço que ele faria de madeira e já pensava que se fosse mesmo menino chamaria de Josué, talvez Jesus. Escolhia nomes e cores. Pensava que seria um santo. Seu filho com certeza seria o melhor dos homens. Já tinha delírios de mães.
Mas bastava as horas passarem e a noite chegar para a culpa a corroer. Ia buscar formas de impedir isso. Não contaria nada. Nunca! Evitaria Gabriel pra sempre e seria uma ótima esposa. José percebia as mudanças de humor da noiva e saia de perto dizendo não aguentar mulher de TPM. Acabava por passar as noites sozinho. Em tabernas para homens.
Maria não aguentou. Decidiu contar a José, decidiu que nunca esconderia nada de seu marido: inclusive que estava grávida do Espírito Santo.
E contou.
José não acreditou. Encerrou o noivado, quebrou uma cadeira que estivera trabalhando mais cedo na parede. Levantou a mão para o alto, olhou para Maria, mas respirou fundo. Pensou que era a pior das piadas. Rio de Maria. Afirmou que nenhum homem seria tão santo de a querer, mesmo que por uma noite. Só ele a aguentava.
Triste com as palavras ditas na hora da raiva, Maria decidiu buscar Gabriel. José não conhecia muito o seu amigo, mas Maria sabia que na palavra de outro homem ele acreditaria. Por ser mesmo um anjo omitiu os detalhes da festa e confirmou o que Maria pediu.
José ficou sem reação. Humilhado por sentir seus olhos cheios de lágrimas. Saiu correndo. Pensou em fugir antes que começassem a falar. As notícias corriam rapidamente na pequena cidade de Nazaré. Era necessário que ninguém soubesse.
Se trancou no quarto. Pesou e pensou no que faria. Nesses dias exigia de sua mãe uma nova garrafa cada vez que a sua acabasse. A coitada pensava que o filho devia estar doente. Esses jovens de hoje em dia, pensava ela, sofrem da cabeça por pouca coisa. Antigamente que era bom. As pessoas aguentavam pragas e não reclamavam de nada.
Maria tentou ser discreta. Com Gabriel procurou informações sobre Espírito Santo imaginando que o pai ia querer saber como resolver a situação. Quando encontraram Rafael, este não não estava em seu melhor momento, caído diante de uma mesa de linhas brancas, respondeu que tinha visto o colega virar uma pomba branca e sumir no mundo. Gabriel delicadamente sugeriu que o amigo ficasse longe daquela safra de pó antes de irem embora.
Maria voltou a procurar José. Implorou, chorou, esperneou. Ele se sensibilizou. Tinha ponderado a situação. Poderia falar que o filho era dele e talvez ainda sair de garanhão por ter engravidado a esposa antes do casamento. Seria forçado a casar, mas isso já fazia parte do plano. Por outro lado, e se a criança nascesse diferente? De outro pai. Jamais seria como ele. E se fosse estranho, extraviado, meio desses sensíveis? Andasse somente em grupo de garotos a fazer favores pelo mundo? Não era um risco que valia a pena.
José resolveu a questão. Conversou sua conhecida que fazia anjos e mandou a própria noiva para lá. Ela não aceitou, queria o bebê na terra, não no céu. Mas José perguntou como seria ser enviada para praça pública. Que nem sempre se faz castelo com as pedras que atiram. O argumento amoleceu Maria, que cedeu.
Diferentemente das outras vezes, ele ficou na sala de espera roendo as unhas. Melhor manter as aparências do que sair com fama de corno.
Estava feito. O melhor para todo mundo. Maria abortou o menino Jesus.
Aldrey Riechel é jornalista. Escreve e desenha no https://medium.com/@a_riechel/.
Michelle Henriques é formada em Letras. Uma das idealizadoras do Leia Mulheres em São Paulo. Escreve no https://thefeministhorror.wordpress.com.
Imagem destacada por Thom Masat, do Unsplash