Musa em decomposição
O escritor Miguel Valentim tinha o hábito de se reunir todas as sexta feiras com seus amigos do coletivo literário Desordem, para beber cerveja e jogar banco imobiliário. Normalmente eles se revezavam, cada semana num apartamento diferente, onde acontecia uma mistura de sarau, happening, brainstorm e não raramente orgias de pequeno porte. Especialmente naquela noite quase todos eles estavam sendo despejados por falta de pagamento do aluguel. Miguel não, este dissera que seu imóvel estava sendo dedetizado, o que era um pouco impreciso, na verdade ele havia deixado todas as bocas do fogão acesas antes de sair de casa, na esperança de assim aniquilar todas as baratas. Também temia que seus amigos fracassados dormissem no sofá e não fossem embora nunca mais. Já havia acontecido antes, o poeta Sergio Mauro habitou por meses o sofá de Miguel (inclusive compôs um soneto intitulado “A poltrona de Valentim”) e só saiu devido a uma crise aguda de apendicite.
No bar, eles se dividiram entre compartilhar seus projetos fracassados e elaborar novos planos mirabolantes que iriam tomar de assalto a língua portuguesa. Valentim distribuía farpas capciosas pela mesa, ao mesmo tempo em que afundava numa dor amuada, resistente às tiradas espirituosas que se seguiam a cada brinde. Aos poucos aquelas faces carcomidas de esperança foram se esfarelando diante de seus olhos, como uma miragem no deserto, só que com uma porção de batata fritas servindo de oásis. Ele dormiu de bêbado, foi arrastado como uma bagagem extraviada até que acordou sozinho, babando no tapetinho onde escrito “espero que tenha trazido cerveja” em frente sua própria porta.
Já do lado de dentro, após superar a enxaqueca, veio a lembrança de ter escrito alguma coisa antes de apagar. Se ergueu com dificuldade, se apoiando nos móveis, derrubando um vaso de plantas de plástico que se espatifou no chão. Olhou para a parede coberta de postiches com anotações para romances, contos e poemas. Sempre começava empolgadíssimo, depois naufragava no meio, acossado pela culpa e pela preguiça.
Pegou aquelas folhas rabiscadas com uma ânsia venérea, tentou decifrar as letras que pareciam subitamente borradas ou embaçadas. Colocou os óculos mas de nada adiantou. Estava simplesmente indecifrável. Pegou um livro a esmo na estante e com o mesmo par de óculos, conseguia lê-lo normalmente. Ao voltar para os escritos, subitamente vinha aquele embaçamento. Devia ser culpa da ressaca. Bebeu uma garrafa de uísque e desmaiou.
Acordou assustado com o choro convulso de Darlene, a faxineira que tinha uma cópia da chave do apartamento e vinha duas vezes por semana para dar uma geral. Como de costume (embora Miguel lhe devesse 3 semanas), viu aquelas folhas amassadas no chão e já foi lendo, esperando encontrar alguma história picante. E dessa vez foi diferente. Ela de repente experimentou o êxtase, a transcendência, e desabou de emoção.
Carlos, um vizinho de longa data, ouviu o choro e apareceu na porta para ver o que estava acontecendo. Miguel não sabia. Darlene ao tentar explicar só chorava mais. Carlos pegou uma das páginas da mão de Darlene, leu meio parágrafo e caiu de joelhos, como se tivesse lido a noticia da morte de um parente. Miguel tomou a pagina da mão dele, tentou ler e nada. Tudo embaçado.
A partir desse dia mais pessoas viriam dar uma olhada nas tais páginas emocionantes, sempre saindo de lá chocadas, aos prantos (algumas vezes tiverem que chamar ambulância). Mais estranho: quando Miguel perguntava a alguém o que estava escrito ali, a pessoa ria e ao falar, a voz, só para os ouvidos dele, saía truncada, como uma estação de rádio sintonizando. Até que um dia apareceu o editor.
O (ex) editor de Miguel, devendo meses de condomínio e sem conseguir pagar a pensão dos filhos e um financiamento na caixa, pressionava para que eles escrevesse mais, ele queria um livro.
“Mas não sei, deve estar havendo algum engano” – protestava o escritor. “Engano foi atravessar o oceano atrás de tempero e dar de cara com índio pelado, isso aqui é outra coisa” – rebatia o editor.
Pois o escritor se entupiu de remédios, sentou na frente do PC , tentou buscar inspiração e adormeceu. Acordou com várias laudas escritas, como se duendes tivessem vindo durante a noite e feito isso por ele. O editor leu meia frase e já mandou publicar. Sem explicação, e no boca a boca, o livro se tornou um sucesso.
Passou dias seguidos sem sair da cama, agarrado a um pinico. Com medo do pior os amigos arrombaram a porta do apartamento, logo atrás veio a faxineira “eu tinha a chave seus cu de burro”
Naquele ano ele ganhou todos os prêmios literários nacionais – o prêmio SESC de literatura, o Premio São Paulo, o Jabuti, o Biblioteca Nacional, o Oceanos, o Kindle, o Machado de Assis, todos.
O que mais enerva Miguel é que não só ele não conseguia ler seu próprio livro, mas quando alguém vinha falar sobre, as palavras saiam embaralhadas e picotadas, como um interurbano pra Manaus, e as pessoas ao redor interpretavam isso como pura excentricidade, misantropia ou descarado cinismo.
Com o tempo ele se entrincheirou num forte erguido com caixas de remédios pra dormir, remédios pra ficar acordado e remédios pra esquecer dos remédios. Outros três livros fizeram enorme sucesso e ele chegou a aparecer na televisão, primeiro em programas culturais decadentes mas logo em seguida alçando vôos mais altos no programa da Ana Maria Braga (souflé à La Proust), no do Faustão, do Silvio Santos, no Ronnie Von, no Bial e até na TV Aparecida. Pessoas relatavam transformações em suas vidas depois de lê-lo.
Um dia… Bom, um dia ele olhou a página recém escrita e entendeu o que tinha lá. Teve taquicardia. Mandou pro editor que viu e detestou. Percebeu que a fonte havia secado. Sem explicações, vem fácil, vai fácil. Cogitou o suicídio, estava por demais enredado pela fama, pelas mulheres, prestígio, sem falar na deliciosa inveja dos amigos que desprezava. Mas, se olhou no espelho e saudou a si mesmo como um general recém saído da guerra, e se conformou. Até tomou um banho simbólico, pra lavar qualquer resquício de talento que ainda restasse em seu corpo. Desse dia em diante passou a dar palestras e virou crítico literário. A quem perguntasse se dizia enfadado do mundo das letras, dizia brincando que agora só consumiria livros de colorir e palavras cruzadas (o que era verdade).
Até que um dia ele resolveu correr no parque. Aquela temporada de excessos quase destruíra sua saúde. Por dentro seus órgãos estavam derretendo, mas por fora era ioga, macrobiótica, reike e o escambau. Corria numa noite úmida de verão quando escutou uma voz ou melhor, foi retido por uma frase. As palavras mais doces da língua portuguesa haviam atravessado seu caminho, e de repente uma parágrafo inteiro, como um fantasma que caminhasse por entre as árvores e resolvesse lhe dizer olá. Valentim parou, se apoiou nos joelhos e jurou pra si mesmo que iria parar de misturar benflogin no suco de couve. Mas de novo veio a voz, e dessa vez ele a seguiu.
Se deparou com uma bela mulher que devia ter no máximo uns cinqüenta ano, em trajes de ginástica, puxando pela coleira um pequeno poodle. A voz não vinha dela, mas daquele cão, e cada latido era um pedaço inteiro do Lusíadas, Miguel Valentim estava em choque, aos prantos. A mulher estacou e foi em sua direção, a fim de lhe socorrer, pensando se tratar de um infarto ou AVC (já havia enterrado dois maridos, sabia de cor os sintomas). Ela estava quase gritando por ajuda quando abriu um sorriso e disse “Miguel Valentim! Li todos os seus livros, sou sua fã!”. O nome dela era Marlene, era pedagoga e professora de ioga. O cachorro era uma fêmea indócil chamada Pedrita. “Pedrita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Pe-Dri-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Pe. Dri. Ta” – repetia pra si mesmo Miguel Valentim.
Naquela noite conversaram bastante. Foram para o apartamento de Marlene, beberam alguns drinks e tiveram um combate corpo a corpo na horizontal que as pessoas comumente chamam de transa. Parecia que estavam tendo um caso, Marlene apresentou Valentim para todo seu círculo de amigos, e o escritor que estava acostumado a carregar troféus, agora era ele mesmo um troféu, chegando a simular encanto e simpatia, e cavalheirismo para com sua “namorada”.
Miguel inventava todas as desculpas possíveis para se encontrarem ou melhor, pra encontrar Pedrita, sempre levando cadernos de anotação e gravadores. Primeiro Marlene se sentiu inebriada por namora um escritor famoso, um ídolo, e um amante obcecado. Mas logo percebeu a estranheza do seu comportamento, o jeito quase obsceno com que ele tratava a cachorrinha, os presentes que dava para Pedrita, o jeito que ele a provocava fazendo a coitada latir sem parar e pior, gravando seu latido, sob uma desculpa qualquer. Miguel por outro lado vivia uma renascença pessoal. Mandou o esboço do novo romance para o editor e este jogou fora antes de ler, então mandou outro. Enfim publicado, voltou a lista de mais vendidos da Veja, foi eleito intelectual do ano pela APCA, capa da Isto é, ganhou adaptação na Globo, gastou uma fortuna com botox e prostitutas.
Um dia Marlene resolveu terminar, não agüentava mais a esquizofrenia do namorado escritor, precisava de paz. Miguel não aceitou de jeito nenhum, brigaram feio, ele liberou os comentários horrendos que vinha acumulando desde o primeiro dia no parque. Os vizinhos tiveram que chamar a policia. Miguel passou semanas sem ver Pedrita, sonhava com ela, inclusive sonhos que beiravam a zoofilia.
Por fim armou um plano pra raptar a cadela. Sabia seus horários, seus hábitos, sabia como atraí-la, eram íntimos. Montou o cerco, vigiando a distancia com um par de óculos escuros que não disfarçavam absolutamente nada e esperou um descuido de Marlene, que não demorou a acontecer, um dia que a dona parou para conversar com alguém e deixou o animalzinho passear. E zás! Miguel meteu Pedrita numa caixa de papelão e correu para um hotel no centro da cidade.
Passaram dias se alimentando apenas de ração canina, água da pia e café frio, dentro de um quarto escuro, em uma cama de lençóis desgastados, que se rasgavam ao toque das patinhas nervosas de Pedrita. Miguel Valentim absorveu um pouco das sombras e da sujeira das paredes, ele próprio um espectro por trás da cortina, vigiando uma barraca de cachorro quente do outro lado da rua. Miguel escrevia sem parar, cada latido um capítulo, cada rosnado uma sentença, cada uivo uma tragédia. Mas Pedrita não reagira bem ao cativeiro, uma cachorrinha livre não se dobra fácil. Um dia ela cruzou as patas em frente a porta do quarto e decidiu que só se mexeria dali se fosse levada de volta pra casa, o que fez Miguel entrar em pânico, pois faltava pouco para a conclusão de sua obra prima. Alguns dias depois o dono do hotel arrombou a porta e sentiu um cheiro nauseabundo ao entrar no quarto. Se deparou com o hospede catatônico agarrado a um animal visivelmente em decomposição.
O escândalo repercutiu em todas as esferas literárias, da academia aos booktubers. O ultimo livro inédito encontrado no notebook foi editado e publicado, e novamente ganhou todos os prêmios literários possíveis, inclusive os internacionais. Hector Babenco dirigiu uma adaptação da biografia não autorizada de Miguel Valentim com Paulo César Pereio no papel do escritor.
Miguel, diagnosticado como louco, repousa numa clínica no interior de São Paulo ( quem paga é a editora), aconselhado pelos médicos a evitar qualquer estresse e principalmente, mantido longe de qualquer tipo escrita. Em seu quarto é proibido entrar com papel, caneta, lápis e qualquer aparelho onde se possa redigir um texto. Ele passa o dia vendo Netflix e ouvindo cds de tecno dos anos 90 em um discman caindo aos pedaços. De vez em quando, na hora do banho, ele se mira no espelho e improvisa um bizarro monólogo cheia de frases desconexas que invariavelmente termina com ele pegando em seu pênis, pálido e flácido, tal qual fosse uma marionete, e repetindo “ eu vou escrever o melhor romance da literatura brasileira, sobre um homem branco de classe média alta, um escritor com bloqueio que tem uma epifania ao se envolver com uma garota menor de idade e então”, e essa é a deixa para o enfermeiro entrar com a seringa e fazê-lo dormir. Uma vez o enfermeiro se atrasou justo quando Miguel cismou que se tornaria um escritor judeu, analisou o próprio membro e quis fazer a circuncisão ali mesmo, no improviso.