Infiltração
Eleanor acordou em uma manhã de domingo e reparou que no teto do seu quarto havia uma mancha amarelada. Pensou se tratar de uma sombra e por isso esfregou os olhos com força. Reparando melhor, a moça notou que o formato lembrava muito uma borboleta. Sorriu. Tinha fascnação por esse inseto, o qual chamava bicho. Fez um leve carinho em Simão para despertá-lo e pergunta-lhe se era mais um de seus achismos. Ele miou indiferente.
Levantou devagar. Pisou no seu tapete felpudo antes de calçar os chinelos. Se arrastou até a cozinha e foi seguida pelo gato. Jogou um copo de ração para ele e pegou um copo de café para si. Haviam os dias em que ela se confundia com as doses diárias, mas não hoje. Sobretudo hoje. ‘O que seríamos de nós sem o café da manhã, não é Simão?’, disse Eleanor em sua frustada tentativa de estabelecer um diálogo.
Estranhou o sol do lado de fora. Se perguntou onde será que foram parar todas as nuvens da noite passada. Foi até a janela e sorriu. A vista não era grandes coisas, mas era o suficiente. Nem precisou colocar a cabeça do lado de fora para ouvir o imenso barulho da sua rua. Recuou com sua xícara ainda em mãos e estava pronta para deixar seu posto até notar um pequeno movimento entre os fios… Uma pequena borboleta amarela! Se arrependeu de ter um mosqueteiro na janela. Ainda assim considerou como um segundo sinal de sorte.
Não quis ligar a televisão para manter o bom humor. Não acreditava nas notícias. Pegou o celular e entre as mensagens familiares de bom dia, animadas e coloridas quase não pode enxergar a do grupo de estudo do curso de administração da faculdade – que ela ainda precisava pagar a fatura daquele mês. E quem diria que logo de Joaquim que nunca escrevia nada. Convidava a todos para irem a sua casa. Fazer o trabalho é claro, mas deviam levar cervejas. Somos um grupo, ela pensou. E aceitou.
Apesar de não beber, considerou levar uma Smirnoff Ice. De vez em quando, não há mal algum. Não há quem resista a uma bebida doce. Talvez levasse duas, caso Joaquim quisesse. Poderiam conversar enquanto bebiam juntos. Ela já podia imaginar. ‘Iremos nos aproximar. Vamos sim’. Se percebeu sorrindo e tratou de resgatar as notas que estavam guardadas para emergências. Tomou banho, se arrumou e foi as compras. Pegou alguns pacotes de amendoins para agradar aos colegas também.
O ponto de ônibus era na esquina de seu apartamento. Esperou por 30 minutos. Todos sabemos como nosso sistema de transporte funciona aos domingo. Podia pedir um carro, mas no presente momento precisava economizar. E poderia precisar na volta. Quando desceu, notou um anuncio iluminado cheio de asas batendo. Hoje seria um dia especial. Respirou fundo na entrada do prédio. Se libertou de todos os medos, puxou o ar e tocou a campanha. Subiu para o penúltimo andar.
Eleonor notou que foi a primeira a chegar. Não entendia porque marcar horários se não fosse para respeitá-los. O computador em cima da mesa estava ligado em um portal de notícias. Sentiu algo se agitar em seu corpo enquanto constatava o quão inteligente era seu colega Joaquim. Parecia mais jovem do que seus quase 30 anos com sua bermuda, camiseta e a barba quase desleixada cobrindo todo o rosto. Enquanto o cumprimentava desejou ter passado a mão em seus cabelos ondulados, parecia tão macio. Ficou ruborizada e encontrou uma cadeira próxima da janela, onde aguardou até que ele terminasse de usar o computador.
Letícia chegou com Rafaela antes que eles pudessem estabelecer qualquer diálogo. Até Martins, tão pontual nas aulas, chegou atrasado. Trouxe mais cerveja. Notou que foi a única a levar fichário e canetas (de diferentes cores). Sempre se esquecia de que hoje em dia tudo é digital. Não se importou, poderia fazer suas próprias anotações e gostava disso. As pessoas se jogaram no sofá e nos puffs disponíveis da grande sala do apartamento.
Esperou alguém lhe oferecer um lugar diferente. Não aconteceu e permaneceu observando da janela. Enquanto o sol ia baixando as pessoas discutiam política. O que, notou Eleanor, não era nem de perto o tema do trabalho. Para administrar qualquer coisa, acreditava ela, era necessário ser isento. Nenhum gestor pode estar acorrentado a tramas políticas. O correto é não se posicionar. Por isso não debatia e, na verdade, nem mesmo tinha uma opinião formada.
Notou que Martins e Joaquim divergiam em seus posicionamentos. Tentou acompanhar o assunto, mas não entendia porque o tema despertava tanto amor. Pegou uma folha e começou a desenhar pequenas borboletas no canto da página. Notou que as asas pareciam corações e constrangida rasgou tudo. Guardou no bolso do casaco o papel despedaçado. Guardou os restos no bolso do casaco. Então ouviu seu nome ser chamado. Vindo direto da boca de Joaquim. Sentiu o bater de asas amarelas em seu estômago. Ele pedia que ela buscasse mais cerveja na geladeira.
Uhun. Foi tudo o que ela conseguiu murmurar como resposta. Se levantou e foi até a cozinha. Era ampla e iluminada. Todos os móveis combinavam e muitos dos artefatos ela nem saberia como usar. Devia dar trabalhar arrumar e limpar tudo aquilo. Era um rapaz muito organizado, de certo, porque tudo parecia brilhando. Ouviu que uma das meninas gritava para levar uma para ela também.
Na volta aproveitou para pegar os saquinhos de amendoins e oferecer a todos. Se acomodou novamente em seu canto, admirando ora a paisagem ora as pessoas que tanto gesticulavam. Os temas foram variando e as vozes aumentando. Percebeu que não tinha barulho na rua onde Joaquim morava. Havia calçadas e árvores. Procurou pelos céus algum novo sinal e não encontrou. Mas já tinha tido o bastante ao longo do dia.
Com a escuridão tomando a rua e invadindo a casa, alguém sugeriu ligar o som. Ela então lembrou do trabalho. Todos riram. Ela resistiu à vontade de chorar que sempre surgia sem motivo. Joaquim se aproximou dela, pegou um cigarro e acendeu. Ela sentia a fumaça próxima e pensava que estavam compartilhando o mesmo ar. As borboletas se agitavam dentro dela. Joaquim disse que a achava muito inteligente. Ela corou. E que por isso ela deveria começar organizando as ideias iniciais e depois eles trabalhariam em cima. Eleanor ficou honrada. Não se via como inteligente, mas se esforçaria para fazer algo que ele gostasse. Tinha persistência.
Ao vê-lo se afastar feliz resolveu ir para casa. Estava tarde e precisava alimentar o Simão. Em seu apartamento arrumou a bagunça do dia e vestiu seu pijama. Teria que pensar em como melhorar o tema do trabalho no dia seguinte. Já era tarde. Escovou os dentes e foi deitar. Com a cabeça no travesseiro olhou novamente para a mancha no teto. Parecia diferente. Talvez fossem as luzes, mas a figura se deformou e, Eleonor pensou, agora parecia mais com um rato.