Faca
Descia a Harmonia sábado à noite com a garota que conheci há uma semana e no meio da rua tinha um bêbado atravessado gritando para o céu escuro mas borrado de luminosidade. Um jovem branco de boné e blusão amarrado na cintura por baixo da camisetona gritava de volta para o bêbado que se ele não se levantasse ia rolar porrada que não era pra ficar ali jogado no meio da rua que se não saísse pelo bem sairia pelo mal. O bêbado homem magrela e marrom continuava a gritar para o céu que se foda o mundo eu quero é falar com deus. Não cabe ser supersticiosa numa cidade grande então o passeio seguiu até a mesa de bar onde a garota que conheci há uma semana repetia a mesma história de dois dias atrás e eu sentia que a ressaca do dia anterior ainda não tinha passado e que a cerveja do presente não estava fazendo efeito. E então chegou a nossa comida. O garçom moço branco atarracado deixou a comida no meio da mesa, dispôs os pratos à nossa frente e ao lado de cada um deles, pôs o garfo e a. Quando contei que esse foi o gatilho, ela me fez crer que não tinha tido um surto psicótico, mas que tudo se relacionava. Dizia com sua voz grave e vestindo roupas de cores sempre equilibradas naquela sala cheirando a alguma erva cítrica que não sei qual é. Do meu lado esquerdo, via de esguelha a janela que dava para as outras janelas e em algum canto despontava o céu sempre a anoitecer àquela hora, a hora que escolhi porque assim sobrava o começo da noite para continuar a resolver as coisas que importam. Tudo se relacionava com a infância cheia de significados vazios e sombrios, lembra aquela tarde em que você correu feito louca do tio que gostava de mexer na sua pepeca e foi parar na tarde da sala daquele prédio feio onde as garotas te passavam o baseado e você já não aguentava mais e acabou chorando com medo de que os monstros te pegassem? Lembra quando olhava pela janela aberta do seu quarto com medo de se jogar e acabou olhando por tanto tempo que a janela cerrada do décimo sétimo andar do escritório da agência te fazia querer morrer? Lembra quando andava na praia de um sábado à noite orlando o mar de uma adolescência pululante e a prostituta pediu um gole da bebida e perguntou para você e seu namorado se o que vocês queriam com aquela roupa estranha, com aquela postura deslocada, era destruir tudo – e que se foda o mundo? Vocês queriam quem sabe era deitar na areia e gritar para o céu qualquer coisa, talvez a certeza de que nunca falariam com deus. Lembro de uma vez em que andava nessa mesma praia, mas para o lado oposto – a praia é sempre a mesma porque nesse litoral não há reentrâncias e a orla é a maior do mundo – e ouvia de longe um grito jogado para o céu. Era a garota drogada da escola que tinha catorze anos e misturava remédios com bebida escondida dos pais. Esparramada na areia, ela gritava palavra nenhuma e às vezes acho que esse sobressalto que fez meu corpo pular há pouco da cama com um aperto no coração é uma espécie de grito para o mesmo céu escuro que me observa em algum lugar por trás desse teto. No final, tudo está relacionado, todos os gritos compõem uma harmonia: quem sou eu?