Deus no banheiro
Eu tava no banheiro escovando os dentes em frente ao espelho, curtindo os mistérios profundos da escovação, ouvindo Soft Machine (uma música de 20 minutos, claro) quando me vi e imaginei sozinho, só eu e o meu reflexo cheio de pasta, na casa inteira, e todos os caminhos que o som percorre, antes de voltar sob a forma de eco e confirmar minha solidão. E aí veio aquela brisa mística “eu sou um, todos somos um só, como células, quem sabe moléculas do mesmo corpo.” E aí imaginei Deus escovando os dentes, completamente só, porque ele é tudo que existe mas nem aquilo que é parte dele mesmo consegue compreender quem ele é, Deus debaixo do fazendo bochechos, cuspindo no ralo, e lembrei daquela frase do Godard “ o sonho do estado é ser um, o sonho do indivíduo é ser dois”. E imaginei Deus sentado na cama, desesperado de tanta onipotência, chorando baixinho, criando um espelho atrás de outro, como uma célula com defeito que não para de se multiplicar, como uma pessoa brincando com bonecos ou marionetes (esperando o antidepressivo fazer efeito), inventando discussões sobre quem seria o criador das marionetes, eventualmente uma marionete tacando fogo na outra, venerando um incognoscível Deus Boneco de Posto que passa a eternidade no limiar do Grande Posto Ipiranga dos Antigos Mistérios, nos chamando, acenando sem parar e depois, e depois? Talvez Nosso Senhor arremesse pratos pela janela e uma dessas marionetes veja e pense: não estamos sós no universo (ou na cozinha). E depois imaginei se algum dia Ele não chegou bêbado e melancólico em casa e não esmurrou o espelho, fazendo voar cacos de vidro pra todo lado e esse é o motivo de às vezes eu me sentir menos que um fragmento de algo que reflete uma grande pergunta, não chegando nem a categoria de reflexo do universo, e se essa explosão de raiva não foi o big bang (quem foi que disse que o universo começou no BIG BANG e vai acabar num GANG BANG?, não lembro). Está muito apertado aqui, isso não parece a eternidade, isso aqui é o CU de deus fazendo seus exercícios peristálticos pela manhã. E que muito louco pensar que toda realidade que conhecemos não deixa de ser (ou não ser) uma grande esquizofrenia cósmica, e também um incesto, que baixaria. Mas aí um rapaz muito bonito me chamou no whats e eu parei imediatamente de pensar essas groselhas. Contra o desejo não há argumentos. E Deus colocou uma toalha sobre o espelho. E isso era numa terça feira, não que faça diferença.