A Parábola da Barragem e a Mulher
ALERTA DE GATILHO: Violência extrema e uso de linguagem com conteúdo forte
ALERTA DE GATILHO: Violência sexual
ALERTA DE GATILHO: Conteúdo religioso
“Você está prestes a acordar quando sonha que está sonhando”
Novalis
Mulher adulta vitimada por sujeito do sexo masculino mediante cárcere e forte agressão com sinais de abuso sexual. Traumatismo craniano, significativo trauma renal com laceração no rim esquerdo em consequência de repetidos golpes com objeto contundente, sangramento interno, fratura nas vértebras T9 e T10, fissura na L1, fratura nas C7 e C8, perfuração do pulmão esquerdo, pulso esquerdo esmagado, múltiplas fraturas na parte média da face, destruição parcial do globo ocular direito mediante ruptura do mesmo, fratura maxilar com consequente luxação lateral dos elementos dentais 4.3 e 4.4, avulsão dos elementos dentais 1.4, 1.3, 1.2, 1.1 e 2.1. Foram observadas ainda lesões extragenitais e mamárias leves, com indícios de coito forçado, sem apontamento conclusivo da natureza do instrumento utilizado.
Horário do óbito 15:25.
Mortos não falam, não contam histórias. Não deveriam. Estão, para toda a eternidade, silenciados pela sua própria e natural condição, exceto por mim, o meu corpo é um imenso fantasma alvoroçado de verdades, todo ele nesse momento se dilata e se dissolve em um caldo repulsivo, vertendo fleimas narrativas daquilo que eu escondi da forma que pude e que não posso mais, posto que não há mais quem eu fui para poder seguir mentindo. Uma única verdade ocultada que se hospedou em mim, semeada, ela floresceu e se transformou em um grande jardim, cortado por alamedas e passadeiras sinuosas e estreitas, daquelas em que somente pode caminhar uma pessoa de cada vez, em passos disciplinados, calculado. Flores de diversas espécies, cheiros e cores vivas multiplicadas. Uma única gota de verdade contida, que aos poucos se transformou em uma represa de rejeitos e escória interiores. A minha morte volatiza sussurros secretos e, ao mesmo tempo, se cristaliza em arquivos, que se organizam em pastas pardas, fichando reações químicas, laudos, prontuários e receitas médicas, medicações variadas e histórias que ninguém jamais deveria saber, que eu não queria que soubessem, que eu precisava que ninguém tivesse sabido, que eu jamais pretendia contar, meu único e abrasador segredo. Meu corpo é o documento de delação daquilo que ocultei e cuidei como uma cria sob o piso aos meus pés, algo só meu, meu particular indetectável e seguro, mas vivo, em sua minúscula forma viva, que segundo aprendi na escola, nem vivo direito é. Justo eu, eu que assisti ainda jovem o ocaso de uma ditadura assassina e persecutória. Para quem viveu no tempo em que eu vivi, delação é coisa séria. Meu corpo é um delator vil das minhas ações. A esmaecida final após o desgarramento da resistência total das minhas forças e que desencadeará a destruição da minha família como a deixei antes de sair de casa pela manhã para ir trabalhar.
CAPÍTULO ÚNICO
Era uma vez uma barragem cimentada com mentiras que continha verdades sobre uma mulher, no momento em que o corpo dessa mulher se rompeu, rompeu-se também a barragem do discurso que ela criou sobre si mesma. Romperam-se a carne, o discurso e a vida, como se tivessem sido atingidos a uma só vez pela ponta sagital disparada por um anjo vingador a serviço de Deus neste mundo para ensinar algo que somos em nossa infinita ignorância incapazes de compreender. Assim, na ausência de sua boca e sua mente tecelãs a serviço da construção da grande barragem, materiais até então contidos deslizaram em direção ao vale sagrado reinado pelo Senhor Jesus, destruindo e inundando tudo pelo caminho onde passou. Eu sou essa boca e mente pantanosas e, a partir desse momento, quem conta essa história não sou eu, é a minha carne e o meu sangue. El Shaday, misericórdia da Tua ovelha. Mais nenhuma mentira sairá da minha boca desse instante em diante, porém não haverá igualmente o silêncio dos mortos que se foram em estado de graça e verdade. Tenha misericórdia da serva de Tua Igreja, meu Jesus, e opera um milagre em mim, assopra em meu corpo o dom do Teu espírito e não permita que eu morra nesse momento, somente o Teu sangue tem esse poder, o sangue do cordeiro de Deus..
Por quanto tempo se pode conter a verdade de inundar a vida de uma pessoa e ter consequências que ninguém pode controlar ou prever? Minha mentira foi construída assim, como uma longa barragem para conter o castigo pelo pecado que eu não cometi, pois Jesus sempre foi uma sombra em minha vida, sempre servi fiel em Tua Igreja, a quem ofereci meu décimo e a minha família, fui castigada não sei quando, não sei como, não sei de onde e aceitei a minha pena em silêncio e resignação, com a minha cabeça abaixada, tenha piedade da Tua filha humilde que Te pede nesse momento que reverta o mal que se encaminha, em nome de todos aqueles que, em seu imenso castigo, são pagadores obedientes e seguem em sua fé porque aprenderam com Jó e derrotarão Satanás.
Humana e falha que sou, Jesus, jamais tive a coragem de dizer ao meu marido o que havia, porque nunca foi dada a mim a sabedoria de como fazê-lo. Fui fraca e incapaz de enfrentar o que seria de nós caso essa doença do Satanás tivesse entrado em mim usando o corpo do meu esposo por Ti consagrado ou, pior, o que seria de mim caso não tenha vindo, o que ele pensaria, como reagiria, por quais mundanidades me culparia e julgaria, provando assim que toda mulher é como Eva e traz a perdição para dentro de seu lar. Errei, mas sou Tua serva fiel, sempre fui, me ouve e me atenda Deus Que Tudo Vê. Eles dizem que eu já me fui, mas somente Tu em Tua infinita onipotência sabes sobre a vida e a morte, sobre os que vivem e aqueles que cairão. Neste momento os aparelhos estão mantendo os órgãos à espera de meu marido que virá autorizar a doação. Doar órgãos não é preceito da bíblia, no entanto é uma recomendação do pastor da nossa assembléia, ele teve um filho muito doente que precisou da doação de um coração e jamais conseguiu, hoje o menino se encontra na paz do Senhor, logo, todos os irmãos em fé da minha congregação doam, fazemos assim cumprir-se o preceito cristão da caridade e do amor ao próximo, mas eu não posso doar nada, quando meu marido chegar os médicos dirão a ele que meu corpo está poluído, impuro, ele vai saber. Todo mundo vai saber. Toda a igreja vai saber. O que será da minha família quando souberem, meus filhos ficarão marcados para sempre como filhos da víbora ardilosa, da mulher infiel que eu juro que não fui e tu sabes.
Em estado de intenso sofrimento, descreveram, fui encontrada, quase desacordada, lutando pela vida. Mas nenhum sofrimento se compara a revelação que se aproxima, diante do sofrimento da minha família o meu não significa nada. Meu marido é missionário, não poderá mais servir à igreja, será afastado. A cidade é pequena e se ele estiver com essa doença também o que vai ser dele? Vão encará-lo na rua? Apontar? Ele pode ter errado e contaminado o nosso casamento? Pode ter acontecido, mas eu não sei se foi assim, não sei e aceitei a minha cruz todo esse tempo, pelo bem da minha família, tomei todos os cuidados necessários, fui impecável com a minha medicação, nada diante de Ti é encoberto, o Senhor é minha testemunha, conhece os meus pecados e sabe que nada do que eu fiz foi por mal. Já foi anunciada a morte encefálica, mas eu rogo a Ti Senhor porque sei que nada Te é impossível. Eu Te suplico, se eu puder voltar eu juro com meu sangue derramado diante de Ti que vou sumir da vida de todos eles, abandono a minha família e nunca mais apareço para que jamais recaia sobre eles a mancha da doença que carrego, me permita proteger os inocentes da fúria que pode recair sobre eles.
Meu corpo foi barbarizado, partido em pedaços, o Senhor jogou a Tua ira sobre mim e eu aceito. Mas a minha família não. Não permita que meus filhos odeiem e amaldiçoem a própria mãe, que meu marido se volte contra mim, que a Igreja, que é a Tua casa lhes vire as costas, que o meu nome seja lembrado como o de uma messalina, uma rapariga velha. Eu perdoo, e mais uma vez perdoo, perdoo o homem que fez isso comigo, meu algoz, estava possuído e não sabia o que fazia. A culpada sou eu, eu que sempre soube que não poderia fazer visita domiciliar desacompanhada.. Eu conheço muito bem as histórias que as meninas no trabalho contam, a Paulinha uma vez foi trancada em uma residência por uma senhora que achava que ela fosse aquela santa adorada pelos católicos, porque nós usamos um colete azul celeste, rimos tanto aquele dia. Hoje, quando fiz o que fiz, aquela seria a última visita antes do almoço, eu, preguiçosa, me aperreei em terminar logo e fiz o que não devia, eu não poderia ter ido sozinha, quem errou fui eu. Por isso perdoo e mil vezes perdoo. Não tem revolta dentro do meu coração. Só suplico que eu seja perdoada também. Pai misericordioso, em Tuas mãos eu confio o meu destino, opera um milagre em mim.
17:40
O marido entrou acompanhado pelo pastor da igreja na área restrita, o médico igualmente acompanhado, por um membro da equipe de captação de órgãos, convidou ambos a um ambiente reservado, onde informou da situação consumada e perguntou se era vontade da família que fossem iniciados os procedimentos para encaminhar o corpo da mulher para doação de órgãos, ainda estava em tempo e a agressão por si só não impediria isso. A doação poderia salvar muitas vidas, sensibilizam que aquele era um momento de imensa dor para toda a família e compreendia, no entanto alguns órgãos ainda poderiam ser resgatados mediante avaliação de histórico e uns poucos exames. O marido, alto, firme, com os olhos molhados, relembrou o médico que o corpo de sua esposa fora maculado pelo violentador, que estava impura, contaminada pela violência imunda, e que deveriam deixar que o caminho natural seguisse, sem exames ou qualquer outra intervenção. Ela estava a caminho da paz do Senhor Jesus Cristo e de sua glória, ela havia sido uma irmã dedicada à Casa do Senhor e à sua própria família e deveria ser deixada como estava. Nenhum prontuário deveria ser consultado. Nenhuma outra violação seria autorizada em seu corpo. O marido ainda perguntou se poderia se aproximar, tocá-la e se despedir. O médico consentiu breves minutos apenas ao marido, o pastor deveria esperar do lado de fora.
O marido adentrou o leito com a cabeça baixa e bíblia trazida pelo pastor em mãos. O marido em sua fé cristã orou. O marido em sua fé cristã pediu perdão. O marido em sua fé cristã perdoou. O marido tocou o seu braço com carinho e pesar. O marido chorou. O marido respirou fundo. O marido saiu.