Gaiola Dourada – Prólogo
ALERTA DE GATILHO: Tristeza
Mamãe não me trouxe pra dormir. Eu sabia que ela nunca conseguiria, ela não é como todo mundo. Todo mundo me diz que vai ser bom para mim, não parece, não pelos olhares que me dão, não pelo tanto que mamãe andou bebendo esses dias. E olha que ela nem gosta de cachorro, sempre disse que nunca quis um, mas, mais uma vez, quando eu cheguei em casa, foi voto vencido e seus protestos sobre como já estava sobrecarregada o bastante foram solenemente ignorados com olhares de reprovação que indicavam ser ela sempre a estraga prazeres. Porque obviamente fazê-la ceder era um prazer diário de todos nós, já sabemos como insistir e quais códigos usar para que o que ela disse antes seja revogado.
Ela ficou em casa, andando e falando daquele jeito esquisito que ultimamente tem andado e falado cada vez mais. Aquele jeito que se tornou dela, sempre muito triste, com aquele cheiro quente que arde. Ela não é como eles todos, que me trouxeram para dormir chorando, me fazendo carinho e dizendo que vai ficar tudo bem, não acho que vai ficar tudo bem, se fosse ficar tudo bem ela teria vindo comigo. Ela está em casa, daquele jeito esquisito que sempre fica quando está triste, ou neste caso, devastada.
Claro que falando assim pode parecer que estou tentando aumentar a dor que ela sente só porque sou eu quem está aqui. Mas eu vi tudo ontem e nestes últimos dias. As conversas, as brigas, ela falando que foi tudo culpa dela. Ela tropeçando ainda mais, dormindo em qualquer lugar, às vezes vomitando escondido. Ontem, quando fiz cocô em mim mesmo de novo, ela chorou tanto, nem ficou brava como da primeira vez que fiz sem querer no sofá, ela também não pareceu cansada, não disse nada, limpou e foi para a área de serviço ficar um pouco sozinha. Como se precisasse ir até lá para conseguir isso. Ela não é como todo mundo. E está cada dia mais diferente. Mais longe.
Mamãe não gosta de cachorro, nunca gostou, e levei muito tempo para entender que ficar perto dela o tempo todo, tentando me comunicar e fazê-la falar com alguém não faria com que gostasse, pelo contrário, somente iria aborrecê-la e cansá-la. Muitos dias ela nem fala direito com ninguém. Faz as mesmas coisas de sempre, esquece algumas, dorme no sofá ou em algum canto sem querer, depois acorda e volta ao que fazia, sempre tão distraída. Eu, com o tempo, fui notando que, por muitas horas e muitos dias, só teríamos um ao outro e fui ficando um pouco como ela. Quieto. Sem pedir muito colo ou brincadeiras. Sem pular no colo para não correr o risco de ela cair e, principalmente, sem fazer barulho porque ela sente muita dor de cabeça, especialmente quando acorda.
Depois que a gente cresce ninguém mais beija, ou abraça, ou chama para brincar, acho que eu e ela ficamos parceiros depois que eu cresci porque ela entendia bem isso. O que é ser esquecido com água e comida à vontade em uma gaiola dourada. Se fôssemos gatos talvez nem mesmo nos importássemos muito, os odeio por isso, todos. Acho, no fundo, que nenhum deles se importa ou sente esse buraco deixando a gente inchado por dentro quando passam ao seu lado sem fazer carinho ou quando pisam no rabo que flamejava por afeto, você se transforma em espécie de objeto que está o tempo todo no caminho de alguém no intervalo de algo relevante, porque você não é. Passam sem dar ao menos aquela checada com o olhar que mamãe faz para saber se está tudo bem. Mesmo Thiago, que já é bem grande, vejo ela de vez em quando ir até o quarto dele para fazer a ronda e ver se está tudo bem. Sempre quis estraçalhar todos os gatos para desmontar essa auto suficiência que sempre arrogam e que me lembra o quanto sempre fico tão triste por tão pouco. Mas jamais consegui me aproximar de nenhum. Jamais sequer cheirei, a coleira nunca foi longe o bastante e cachorros de família como eu não saem por aí assim para desbravar lugares, coisas e outros seres. Enfim, odeio todos os gatos que já existiram ou que possam ainda haver. Um dia desses, quando veio com a filhinha para visitar mamãe, Carolina disse que não poderia trazer o gatinho dela em nossa casa por minha causa, como se eu fosse um problema só por existir.
Mamãe falou em alto e bom som que foi ela mesma quem fez uma guerra para ter cachorro e que, depois que eu deixei de ser novidade esqueceu que eu existia. Me senti triste por ela estar falando alto com Carolina por minha causa, prefiro quando falam sozinhas uma com a outra. Falou ainda que Carolina, agora que tem sua própria casa, escolheu não ter um, quis um gato porque não quer ter trabalho e não quer dar atenção. Mamãe falou que achava um absurdo como ela tinha se tornado a única pessoa que se importava comigo, mesmo nunca tendo desejado um cachorro na vida dela, e que eu havia sido o único que não a tinha largado para trás como parte da casa quando o pai morreu e cada um quis ser livre e ir viver sua vida. Ia dizer alguma coisa sobre Thiago, possivelmente que ele gritou com ela porque ela esqueceu de preparar o uniforme de trabalho dele, ou ia repetir mais uma vez que ele não ajuda em nada, mas Carolina disse apenas “Ai mãe, lá vem…” se levantou e mudou o assunto porque Bia estava mexendo comigo e ela veio dizer que não era pra ficar pegando em mim porque sou sujo. Mamãe havia me banhando no dia anterior, mas óbvio que ela não sabe.
Depois que Carolina saiu, mamãe disse que ela era uma filha da puta por vir até aqui sem mais nem menos dar palpite na aparência dela, reclamar da limpeza da casa e do cachorro que ela mesma quem quis. Que ela merecia mesmo e que francamente. Olhou para mim e disse “Tá vendo?” Depois se sentou na cozinha e começou a olhar para a louça acumulada. Levantou-se, pegou um copo sujo, fez um redemoinho de água da torneira, olhando bem no fundo dele, serviu água da garrafa do armário, pôs gelo e ficou olhando a louça, massageando as pernas com força em silêncio por um bom tempo. Ia pedir para ela colocar mais ração no prato porque já havia acabado. Longe disso, segurei o ganido e deitei na cozinha junto com ela. Eu já tinha causado tristeza demais a ela por um dia.
Agora Carolina está me levando no carro dela para me fazer dormir com aquele ar soberano de quem sabe que mamãe cometeu um erro e isso faz dela certa e mamãe falha. Ela esqueceu o portão aberto. Eu não sei direito porque saí ou o que me chamou lá fora, foi só um impulso, ou talvez o fato de nunca ver o portão aberto. Ela nunca faz isso, nunca fez. Quando saí correndo um carro me chutou de leve, como o Thiago fazia para eu sair do caminho, foi rápido e nem sei se doeu, mas fiquei tão nervoso quando a vi correndo na minha direção assustada e falando coisas desconexas. O homem no carro gritou com ela, que era irresponsável e várias outras coisas. Eu quis latir para ele, mas o pulmão estava sem ar, como se em vez do chute do carro o que tivesse acontecido fosse que alguém com um aspirador tivesse sugado o ar de dentro de mim com muita força. Queria latir para ele não falar com ela assim, que iria deixá-la triste como no natal em que ela queimou o pernil e todos riram. A família pediu pizza, mas estava claro o quanto tinha sido humilhante e que ela havia estragado tudo. Aquele dia Carolina perguntou por que ela estava com umas marcas de hematomas, ela disse que estava sentindo tonturas, que havia ido ao médico e que ele passou um remédio que ela estava tomando. Nunca a vi tomar remédio nenhum que não saísse da garrafa no armário, a que antes ficava na área de serviço perto do sabão em pó. Depois de levar o pontapé do carro por ter saído de casa, fiquei uns dias numa gaiola pequena no veterinário de castigo e todos os dias sinto muita dor, eu sim tenho tomado muitos remédios. Tem sido bem ruim para nós dois. Não devia ter saído correndo só porque o portão estava aberto, mas eu nunca faço nada direito mesmo.
Uns dias atrás estavam conversando sobre me colocar para dormir, segundo tia Marcela e Carolina seria o melhor a fazer porque eu estava sofrendo muito, que era tortura eu continuar assim. Realmente, sinto muita dor mesmo, mas acho estranho que nenhuma das duas tenha notado que mamãe também sente, ela aumentou bastante o remédio que toma faz tempo. Nenhuma delas falou em levar mamãe para dormir comigo, tenho certeza que se tivessem dito a ela que também precisa ser levada para dormir ela concordaria e ficaríamos juntos. No fundo, acho que a Carolina quer nos separar.
Mamãe respondeu para elas que não iria me colocar para dormir, que a culpa era dela e que então ela iria resolver tudo e que eu ia viver muitos anos ainda, quanto iria custar não importava. Mas, depois de uma tarde inteira conversando, ela aceitou. Isso foi alguns dias atrás, depois disso Carolina liga todos os dias, mamãe sempre chora quando desliga e toma mais remédio porque sente também muita dor. Ela tem comido muito pouco, faz tempo que não sinto mais o cheiro das coisas deliciosas que ela preparava. Até as sacolas que ela trazia da rua tinham um cheiro bom, muitas vezes era a melhor parte do nosso dia, quando ela chegava e espalhava tudo em cima da mesa para depois separar e começar a cozinhar. A casa inteira se perfumava com aroma de carne, molho, generosidade e amor. Muitas vezes comi repetidamente toda a ração do pote tomado pela voracidade causada pelo odor que preenchia a casa. Muitas vezes sonhei com os pratos. Os dias na cozinha quente e com os risos de todos comendo juntos foram os mais solares que já tivemos, ela era bem mais macia e cheirosa, faz muito tempo que não fazemos isso, desde um pouco depois do natal em que mamãe queimou o pernil. Mais ou menos quando ela mesma já não comia mais todos os dias. Ela diz que não posso comer comida porque vou vomitar tudo, que tenho que comer só a ração, acho que ela devia só comer a ração também e parar de tomar o remédio com cheiro horrível, quanto mais toma mais vomita e dorme e fica na cama, mas como é ela quem busca a comida, pode decidir o que ela vai comer e o que todos comeremos.
Ontem ela vomitou bastante no banheiro da área, ela tem ficado cada vez mais lá e menos no restante da casa. Vomitar tem se tornado comum, ela sempre limpa tudo depois, como sempre fez quando eu vomitava pela casa também. Depois de limpar ficou muito tempo deitada, sem fazer nada. Depois veio cuidar de mim. Queria dizer que não era culpa dela, que era culpa minha por ser impulsivo e desobediente. Que eu vi que ela anda esquecendo um monte de coisas e que anda dormindo muito, mas que tudo bem porque ela está triste e sozinha e que eu também vivo esquecendo as coisa que ela me diz e que tudo bem esquecer. Queria não ganir, mas doeu muito quando ela me virou para limpar o xixi e o cocô, não queria ganir para ela não ficar ainda mais triste, mas ficou. Queria dizer que eu sabia de tudo, que eu tinha visto tudo o que estava acontecendo ultimamente e que eu também não era como todo mundo. Mas senti muita dor, fraqueza e sono. Depois que ela me deu o remedinho eu fiquei um pouco perdido e não tive mais reação nenhuma. Hoje cedo ela não veio falar comigo, quem veio foi a Carolina. Não limpou direito e ainda brigou para engolir o remédio, agora está me levando para dormir, Carolina é como todo mundo.
Ninguém, exceto por mim, sabe mas mamãe não está bem, não sei o que vai ser dela se eu não voltar para casa, por isso preciso voltar mesmo depois de dormir daqui a pouco porque eu preciso cuidar dela.