Diários de Quarentena 3
Tem dias que eu quase esqueço da quarentena. Fazem quase três meses que estou em casa. Desde o começo meu trabalho me liberou para o home office e quase já não saio para a rua. Mas sou obrigada a lembrar toda vez que preciso comprar algo e tenho que lavar a sacola, embalagem e até desinfetar com álcool o maço de cigarro.
Minha relação com o tempo está diferente. Em outras épocas estaria pensando “quase meio do ano e não fiz nada”. Agora, quase meio do ano e mudei minha rotina, lavo sacolas, entendi as rotinas das gatas, fiz receitas diferentes e continuei não concluindo meus grandes projetos pessoais que esperei ter tempo para fazer. (algumas coisas não mudam). Quase meio do ano e tenho sobrevivido. Já é muita coisa.
Escrevendo parece muito tempo. Mas são três meses… ou mais? O que sei é que ficarei em casa enquanto as outras pessoas não ficam. E cada vez mais esse tempo se alonga e mais o cenário se agrava. Tento equilibrar meus momentos com as janelas para o mundo. E também o banho de sol.
Em um grupo de rede social no começo da pandemia alguém perguntou quem já conhecia algum caso confirmado. Nenhum. Um mês depois, um conhecido de conhecido. E hoje estamos nos conhecidos, além dos casos de pessoas com parentes que precisam ir ao médico, mas com medo de ir. Foi um bom jeito de acompanhar a aproximação dos casos das doenças. Temo pelas próximas mensagens.
Eu ainda leio e acompanho as notícias. Faz parte do meu trabalho. Assisto uma vez por dia. Quando ouvimos o primeiro “10 mil mortos” na Europa foi assustador, mas agora no Brasil com as notícias mescladas com tubainas, desmatamento, “e daí? Quer que eu faço o que?” E mais assassinatos nas favelas pela polícia meu senso de prioridade está confuso.
Eu não sei o que devo velar.
E esse é o meu principal medo. Eu não sei se poderei velar as pessoas. Tenho medo da raiva que sinto que me impede de ter empatia pelas mortes. Tenho medo da minha agressividade em proteger os meus e assim, ignorar os que precisam. De não processar o luto que vivemos e banalizar as mortes.
O meu último ano foi particularmente complicado. Me despedi de algumas pessoas e agora me sinto tão grata de tão podido fazer um velório. Olha para onde vai minha gratidão! Fazer um velório. Mas quem já passou por isso sabe a importância de processar essa dor. Esse tempo que agora não temos.
Já estamos de luto. Mas sem tempo e espaço para as despedidas. Nos despedindo da democracia. Do bom senso. Da civilidade. Como vamos processar isso para seguir em frente? Quando teremos este espaço? Está tudo enterrado lacrado.
E jovens mortos nas favelas enquanto ficam em casa. Enquanto distribuem comidas. Se vamos morrer pela cor, pelo lugar onde moramos por quê mesmo eu deveria me importar com o bar da esquina aberta? Com o pancadão? Racionalmente eu sei. Mas sinceramente, tem algum tempo que estou me acostumando a contar corpos.
Esse papo de que isolamento e melancolia é produtivo é besteira. Na maioria dos dias sinto raiva. E não tenho lido nada que não seja obrigatório. Esse texto demorou três meses. Mas melhorei em alguns jogos porque preciso de escapes. Além do álcool, é claro.
Algumas religiões afirmam a importância de viver o agora para não morrer de ansiedade. Para não surtar. Eu costumava gostar desse tipo de coisa. Agora eu só queria correr em outra direção, mas não posso dizer se passado ou futuro seriam sábias decisões. Não há tempos para escolher correr.
Adriana
26 Maio, 2020 @ 02:46
tão pesado; tão real.