Diário de Quarentena: E matamos o tempo
O tempo parou. E estamos todos tentamos sobreviver. É difícil escrever sobre esse momento porque tudo parece que vai muda no próximo mês, no próximo dia, no próximo parágrafo.
Estava relendo meus textos e pensando quem foi que escreveu. Não parece mais comigo. Naquele tempo eu lia. Naquele tempo eu escrevia. Eu pensava sobre as coisas.
Naquele tempo eu não pensava em sobreviver.
Percebo agora que foi aos poucos. Vendo as notícias de um vírus que poderia chegar ao meu país. Lendo os aeroportos fechados. Sobre as mortes, os corpos abandonados em casas por falta de serviço funerário.
Eu me consumi. Quando chegou por aqui me senti na obrigação de repassar os cuidados, as notícias, as informações, os avisos. E o mundo virou minha casa. E repassando para as outras casas próximas por chamadas, por vídeos, por mensagens.
Eu senti um medo terrível de não poder velar os meus mortos. Eu quero o direito de ter luto e enterrar os meus mortos.
Mas parece que ocorre o contrário. Fica tudo em suspenso. Alguém que sai de casa e não volta mais. Não encerra. Estou assistindo pais e parentes de pessoas próximas morrendo como se fossem pessoas distante. Eu não sinto o luto deles. Eu não pude estar lá por eles.
Eu achava um exagero essa coisa toda. Acabou, acabou. Mas agora não acabou. Nossos mortos ainda estão entre nós porque não pudemos sepultá-los. Isso vai nos assombrar.
Eu não quero fantasmas na minha casa. E por isso consumo tudo o que posso sobre os cuidados. Qual a máscara. Qual a vacina. Quando vai ser. O que deu certo em outros países. Eu nem procuro mais pelas informações. Elas chegam. Me dominam. Não tem mais passatempo que salve, porque o tempo não vai passar. Estou alongando meu tempo enquanto fazem de tudo para me matar.
Meu expediente não acaba porque todo mundo perdeu o emprego e não posso desistir do meu. E isso me distrai. Me toma o tempo porque assim não preciso dedicá-lo ao que se passa fora da janela.
Eu procurei o silêncio, mas ele que me escolheu.
E preencho com compras, com móveis fora do lugar, com uma faxina em particular. Pensando nos que não podem trabalhar. E tudo porque não posso mais saber onde quero estar. Os sonhos estão em suspenso. Não teve meta de ano novo, não teve lista e nem planos. Estamos esperando. O ano não acabou, não passou.
A exaustão é diferente. Consumindo aos poucos os prazeres de antes. Esgotei a série que me divertia. Não consigo ver filmes. Não tem pausas para leitura. E criar um texto ou um desenho então? Não cabe criação. Parece que preciso só estar no aqui e agora. Em suspenso. Esperando. Tentando sobreviver. Esperando o próximo que vai morrer.
Estou impotente. Não consigo convencer pessoas a ficarem em casa e pessoas ficaram decepcionadas comigo porque não fui vê-las. Não fui na festinha. Não fui na reunião de “só alguns poucos”. E até isso cansa. Ter que explicar o tempo inteiro. Ter que me explicar o tempo inteiro. Ao mesmo tempo invejo quem não está se sentindo assim, fora do tempo, como eu.
E parei de explicar. Parei te tentar. Só me resta esperar. Antes eu diria esperar pelo melhor, mas agora é só esperar mesmo.
Esse dia não acaba. Esse mês não acaba. Esse ano nunca acabou. Nada se encerra. E me preocupa o quanto isso vai nos assombrar. Vamos conviver um bom tempo com os nossos fantasmas.