Democracia de Mercado
Ou: porque o alvo deveria ser outro.
Às voltas, direita e esquerda perseguem seus políticos-desafetos, crendo que a queda de um, a ascensão de outro, poderia salvar o país. Poderiam fazer as reformas, poderiam evitar as reformas. Mas a pergunta é: de que adianta substituir um ou outro, se o jogo e os bastidores permanecem os mesmos? Os políticos mudam, mas a realidade pouco muda. Afinal, o que nunca muda e quem são os responsáveis pela situação atual?
Uma das teses fundamentais do sociólogo Jessé Souza é que no Brasil, com a implantação da ideologia neoliberal e algumas outras peculiaridades de nosso país, temos o hábito de enaltecer o mercado e condenar o Estado. O mercado aparece como o herói que a duras penas tem que suportar o peso do Estado, seu parasitismo e sua política patrimonialista. Vejam só, a OAS se viu obrigada a “molhar” a mão de um governador para garantir seu empreendimento.
Mas a coisa começa muito antes disso. Nunca é demais lembrar que apenas quatro partidos não receberam “doações” de grandes empresas para suas campanhas. É algo razoável, considerando que ninguém se elege sem adquirir apoios, sem jingles, sem a maquiagem perfeita, sem o tom de pele perfeito, sem produções cinematográficas espantosas. O que nos remete, ainda outra vez, à velha frase de Plínio de Arruda Sampaio: “Empresário não faz doação, empresário faz investimento” — e política é uma coisa cara.
Entre as hashtags personalistas, inflamadas e histéricas, há muito mais coisa escondida. O congresso já é desde o princípio (não ocasionalmente) funcionário do mercado. Como prova disso temos uma recente reportagem do Intercept Brasil, que revela que mais de 30% das emendas propostas por deputados na ocasião da reforma trabalhista foram integralmente redigidas a partir de computadores das associações de empresários, sendo que metade delas foram aceitas (apenas algumas poucas foram redigidas por associações de trabalhadores, para falar em “lobby” dos trabalhadores).
Por isso, não há razão alguma para ficar espantado com as recentes denúncias de propinas. Como funcionários, nada mais natural que recebam por seus serviços. Diz um velho ditado, “nessa vida, nada é de graça”. E porque não são tolos, atendem àquele que pague mais.
A corrupção acontece antes, durante e depois. No capitalismo, o Estado nada mais é que um mediador de interesses do capital, de modo a garantir um equilíbrio mínimo que evite revoluções e garanta a circulação de mercadoria. Esse equilíbrio pode variar conforme as circunstâncias e governos — parece que é isso que vem a ocorrer no Brasil — mas a essência é sempre a mesma, ainda que se possam guardar diferenças.
Engana-se redondamente quem acha que algo como eleições diretas tenha poder para restaurar a democracia brasileira. O que está aí foi posto através de uma eleição direta. Por mais que Dilma tenha perdido seu posto, o congresso ainda foi “eleito” — a festa da democracia — e Dória será o substituto de Aécio, funcionários são substituíveis. Isso a que chamamos democracia sempre foi, e continuará sendo, uma farsa.
A questão é sistêmica: empresários precisam de políticos para trabalhar em seu favor e políticos precisam de empresários caso queiram se eleger — alguém precisa pagar o marqueteiro.
Pode-se pensar então: uma reforma política é necessária para evitar a relação promíscua entre entre Estado e mercado. Poderíamos proibir a “doação” de empresas para político. Proibir mega-produções. Mas no fundo, isso pouco adiantaria. Além do mais, se hoje existe o caixa-dois, não há razão para pensar que ele desapareceria num futuro próximo. Nossa mídia é, como se sabe, muito trabalhadeira. Recebendo por fora, tudo é possível. Sem mencionar que o capital sempre dá um “jeitinho” de burlar as regras. No máximo, os esquemas de financiamento-interesse teriam de ser mais sofisticados.
A mídia e a própria esquerda, de modo geral, negligenciam o fato derradeiro. Envolvidos pelo personalismo, não dão o devido destaque às causas da situação em que hoje nos encontramos. Ao insistirem em falar de personalidades (por mais divertido que isso possa ser), a participação do mercado aparece sempre de forma secundária, como algo ocasional e fortuito. Temer, Lula, Dilma, Aécio, quem mais quiser, são os assaltantes do Estado, do povo e dos direitos — os verdadeiros representantes do mal sobre a terra. Mas e os empresários? Os banqueiros? Não seriam eles os maiores responsáveis? Visto que são, de longe, os maiores beneficiários, os maiores interessados, sem mencionar que são eles os financiadores do mal sobre a terra e, assim, os maiores assaltantes do Estado?
Considerando isso, os políticos levam apenas migalhas, uma mera comissão. O que são milhões em vista dos bilhões que foram gentilmente perdoados aos bancos? O que são alguns milhares em vista do que os empresários podem “economizar” numa época de crise como essa ao se retirar alguns direitos do trabalhador? O que são alguns milhares em troca de se apossar de toda a infraestrutura de telecomunicação do brasil? Apossar-se do pré-sal(serviço prestado pelo “careca” em sua breve passagem pelo governo)? A resposta a essas perguntas é nada. E, contudo, nada significa muito para maioria dos brasileiros.
Não deveríamos substituir #foratemer, #lulaladrão etc etc por #forafiesp, #foraitaú, #forabradesco, #foravale, #foraambev, já que essas pessoas, das quais os empresários se dizem vítimas, foram por eles mesmos eleitos? E o que importa, as medidas, as leis, os perdões que foram promulgados em favor dessas empresas serão revogados?
Os empresários delatam seus próprios funcionários e os enviam para o abate em troca de amenizar suas penas e poderem, a partir de agora, desfrutar de uma vida calma em Miami, vendo seus netinhos crescerem — Os irmãos JBS já anunciaram a mudança. ❤
Pode-se perguntar ainda, mas empresários não foram presos? Alguns foram, mas eles não são de forma alguma os únicos empresários (muito menos a maioria) que adquirem seus políticos e se beneficiam disso. Há bancadas para todos os gostos: bancada dos ruralistas, bancada da bebida, bancada dos minérios. Há também interesses internacionais em jogo e essa é apenas a ponta do iceberg.
A iminente queda de Temer talvez atenda a interesses de um peixe maior e parece ter pego de calças curtas aqueles que defendiam seu governo. Ontem foi dia de ligar a TV. Jamais se viu tanta perplexidade no rosto dos repórteres. Claramente transtornados, é como se dissessem: “É com pesar e com tristeza e, sobretudo, contra nossa vontade, que nos vemos obrigados a noticiar o seguinte: … “, “Sim, esse mesmo, que ontem saudávamos como o herói das reformas “necessárias” e, dizíamos, levava o país pelo caminho certo”. Jornalistas perguntavam — “E agora, o que será das reformas “necessárias”? — Não foi isso que havíamos combinado.” — Reação bem diferente do que quando foi noticiado do impeachment de Dilma, impeachment “necessário”. Outros enxergavam felizes a prova de que a Lava-Jato não era, afinal, partidária. Mas ao que tudo indica, ela era sim partidária e essa nova prova não estava no script, haja vista a reação desesperada dos congressistas, que saíram correndo para casa do grande mestre para saber o que deveriam fazer — cagada da PF e desse ministro do supremo, ou talvez ainda fruto de um interesse maior, que só ficará claro com o que surgir dessa nova reviravolta.
Também a queda dessas grandes empresas brasileiras pode indicar a mesma coisa — porque isso agora? “Sempre trabalhamos assim. É assim no mundo inteiro”. No Valor Econômico temos uma dica. É certo que alguém deve se beneficiar desse caos político.
A política é um grande e lucrativo mercado. Como em todo mercado, às vezes há uma crise.
Artigo publicado originalmente em Revista Maquiavel