Abismo
Já perdi as contas de quanto tempo estou preso aqui no fundo. Ao contrário do que pensam não é azul. Tudo é escuridão. As vezes algum animal se aproxima trazendo algum vestígio de luz. Não é sempre. Passo o tempo tentando lembrar qual o lado de cima e qual o lado de baixo. Sei que não posso avançar muito rapidamente, meu corpo precisa se acostumar com a pressão.
Nem sempre os sinais de luzes são coisas boas. Na verdade me fazem fugir. Como o diabo foge da cruz. Vivendo aqui um tridente nem é mal sinal. A luz não é salvação. Li num livro uma vez. Usam para atrair suas presas e depois a devoram. Por isso me escondo sempre posso. Tenho algo a ser resolvido e não posso ser comido agora. Não quero ser esquecido.
A escuridão tem seus próprios meios de ir nos devorando, pouco a pouco. Eu não tenho pressa. As vezes afundo um pouco mais. As vezes esqueço quem sou. Por vezes me pergunto o que sobrou. No breu não tenho certeza se estou realmente me movendo.
Vejo a luz se aproximar. Corro para mais longe dela. Sei que abaixo estarão seus grandes dentes, que irão me empurrar para dentro de sua boca em uma nova escuridão. O diabo está na luz. Sei que é ele, pois é o que mereço. Um julgamento, terminando na escuridão eterna. Eu corro. Flutuo. Quero sobreviver.
Com restos achados ao meu redor tento escrever um SOS, mas nada parece solido em minhas mãos. As correntezas logo levam meu chamado para longe. Quiçá comuniquem. Não tenho capacidade de propagar qualquer som aqui. Sou um estranho e ninguém entende o que digo. Se pudessem me entender eu diria que sinto muito. Eu realmente lamento.
Talvez eu já esteja no inferno. O juízo final vem em forma de luz. Mas eu me afundo em meus pecados. Minha culpa, eu sei, me afunda mais e mais. Minha ancora. Nunca poderei dizer à ela o que sinto.
As luzes… estão voltando. O diabo se aproxima.
Eu preciso fugir.
Me esconder me salva das feras, mas me encontro comigo mesmo. Meus pecados me consomem. Eu não queria tê-la machucado. As luzes são disfarces. Me consomem. Quero desistir e me entregar. Não aceito minha penitencia.
Em um dos dias bons encontrei um barco abandonado. Há tesouros escondido. A tripulação está morta. Mas se estou vivo não posso garantir.
Deus deve morar lá dentro. Com seus anjos caídos. Quando apontam pra baixo, é a água que querem dizer. Com as asas molhadas nenhum anjo pode mais voar. Não voltam nunca ao céu. Penso que merecem o castigo. Assim como eu. Se os demônios são anjos, só posso ser um deles. Perdi minhas asas logo ao nascer. É o que acontece com todos.
As luzes se afastam.
Sei que vão voltar. Mas ganho tempo buscando uma saída. Preciso dizer a ela. Aline eu sinto muito. Quando em nosso apartamento eu fiz tudo voar. Se não tivesse perdido suas asas se salvaria. Mas você nasceu. Assim como eu.
Vou ao seu encontro. Te vi caindo tão fundo, que acho que posso te encontrar nessas águas escuras. É você o tesouro que o barco esconde. Faz parte da tribulação que me assombra.
Eu realmente te amei.
Há cardumes que passam em minhas pernas as vezes. Posso sentir, mas não vejo suas cores. Sinto falta das cores. A sensação de formigamento. Não sei se existem peixes formigas. Criando buracos no mar e carregando folhas de algas salgadas.
Tudo tem gosto salgado. Sinto o cheiro e o gosto. Pequenas picadas me despertam a cada hora. Acredito que não posso morrer. Não sem antes ser julgado pelo demônio do mar. Com sua luz a cima da cabeça, um livro com meus pecados e seus dentes que vão me devorar.
Estou sendo devorado por mim mesmo de forma muito mais lenta. Não acredito que deus tenha criado tudo em sete dias. As criaturas do abismo foram criadas depois. Quando se frustrou com os seres humanos resolveu despejar sua raiva no mar dando vida à seres assustadores, disformes e gigantes. Um dia usará tudo isso pra acabar com o que tem na terra. Só não conseguiu escolher qual.
As asas não fazem falta em um lugar onde se pode movimentar em todas as direções. O castigo é não saber se está voando na direção certa. Se eu soubesse voar antes teria te pegado no ar. Iriamos rir de tudo isso. Você teria me dado soquinhos no braço, como fazia quando eu a irritava e depois me perdoaria, encantada com a vista do alto.
Vou sair desse inferno te implorarperdão. Refazer os pedaços que espalhei pelo chão. Tudo será apagado e esquecido. Não quero ser esquecido.
As luzes de novo.
Eu preciso fugir.