O mito da literatura feminina
Quando a Joanna Walsh criou a hastag #readwomen2014, me vi em frente a minha estante e olhando meus livros preferidos. Charles Bukowski, Chuck Palahniuk, Nick Cave, Leon Tolstói, Jack Kerouac. Pouquíssimas mulheres. E eu ainda era dessas que diziam não ler livro “de mulherzinha”. Alguns anos depois e aqui estou eu, com um clube de leitura que aborda apenas livros escritos por mulheres, milhares de escritoras preferidas e uma pilha enorme de livros para resenhar.
Não sei nem expressar como eu odeio o termo “literatura feminina”. Partindo do básico, rotular a escrita de uma mulher como feminina é colocar na mesma categoria todos os gêneros. E é impossível comparar o trabalho de Florbela Espanca com o de Svetlana Aleksiévitch, por exemplo. Se não existe literatura masculina, por que haveria a feminina?
Toda escritora que é entrevistada é obrigada a responder o que é ser uma mulher escritora ou sobre sua literatura feita por uma mulher. Uma pergunta injusta, que envolve uma cilada.
Só há duas formas de responder essa pergunta: na primeira se admite que escritoras são mulheres e, portanto, pessoas. Não é comum a pergunta o que são seres humanos, principalmente porque isso envolve respostas individuais, complexas e que ninguém consegue responder de forma a contemplar toda a espécie. O que nos leva a crer que essa não é intenção da pergunta.
Quando se pergunta isso não se quer saber de seres humanos. Somente um homem poderia responder essa pergunta dessa forma, se entendendo como um representante da humanidade. Esta pergunta não é feita para que mulheres escritoras digam sobre sua visão de mundo.
A definição de uma literatura feminina em entrevistas com escritoras reforça a questão de como a sociedade vê a mulher. Como um ser outro, como diria Simone de Beauvoir. Uma espécie secundária que ao produzir automaticamente torna sua produção também secundária, sendo segmentada de forma a valer menos.
A segunda opção de resposta seria explicar e falar sobre o papel da sociedade, com argumentações ou problematização sobre igualdade de gênero. Mas a classificação e o questionamento às autoras em si reforça o papel atual das mulheres da sociedade. O papel do gênero não oficial, que produz de forma não oficial, que não tem autonomia sobre o próprio corpo, sexualidade e história.
Não discutimos a literatura, as obras, a escrita. Sempre somos lembrada do nosso papel secundário.
Tudo que está relacionado ao feminino é considerado sentimental, frágil, inferior. Uma mulher que escreve sobre sexo e drogas é tida como “suja”, enquanto o homem é “forte”. Um livro com traços autobiográficos é considerado corajoso quando escrito por homem, quando escrito por mulher, não é levado a sério. Como classificar então escritores como Nicholas Sparks que escrevem romances açucarados?
Lembrando que a ficção científica foi criada por uma mulher, Mary Shelley, com seu poderoso “Frankenstein”, que já se tornou um ícone da cultura pop. Mesmo que alguém não tenha lido o livro, com certeza conhece essa figura eternizada pelo filme de 1931, com Boris Karloff no papel da Criatura. Esse gênero hoje é tido como predominantemente masculino, mas não podemos esquecer nomes como Ursula K. Le Guin e Octavia Butler que escreveram livros essenciais.
A “qualidade” de ser feminina é posta aqui tanto como forma de reforçar o lugar da mulher na sociedade machista, como prêmio de consolação para as que aceitam desempenhar esse papel. Quando se quebra essa expectativa esse mesmo atributo criado pelos homens nos é confiscado. Feministas são tidas como pouco femininas, mulheres que não depilam (como se fosse um aspecto negativo), agressivas e que não sabem amar. O que causa indignação é a mulher querer se definir. É utilizar suas ferramentas como ser humano para produzir, fazer arte e escrever. Um ultraje para uma sociedade que define o que é ser mulher.
A literatura feminina não é um gênero literário. Nos impede de escrever nossa história como parte da sociedade de forma igualitária. Limita o papel da mulher na literatura. Não se define o que é algo escrito por mulher sem cair no erro de criar estereótipos que nunca irão contemplar a todas escritoras e todas as obras.
Michelle Henriques é formada em Letras. Uma das idealizadoras do Leia Mulheres em São Paulo. Colunista no blog O Espanador e participa do podcast Feito por Elas.
Aldrey Riechel é jornalista. Trabalha com meio ambiente e terceiro setor há 10 anos. Nas horas vagas escritora e desenhista do blog Cai do Muro.