Diários de Quarentena
Meu dia começa cada vez mais cedo. Porque o dia de muitos começou ainda na noite anterior. As pessoas chegam de madrugada com medo de não conseguirem ser atendidas, não sem razão. Deu 14h acabou o atendimento e se não deu, tenta novamente amanhã. As 7h30 a fila está virando a esquina.
“Bom dia! Como eu posso te ajudar? Como faz o cadastramento? Ah, você não tem celular? Não tem internet? Tem alguém que possa fazer contigo? Não? Claro que posso, vem aqui, vou te falando. Preencher pra você? Não posso. Ah, você não sabe ler? Hum, tá, você não fala português. Não, eu não falo francês. Espanhol eu arranho, claro que te digo. Se recebe o bolsa-família, é na mesma data. Ah, foi cortado faz 3 meses, tá tentando resolver no CRAS? Não se preocupa, com o mesmo cadastro consegue receber. Sim, eu sei que o site tá ruim, tem que continuar tentando. Não, não consigo fazer lá dentro. Está com o documento de identidade? Foi roubado? Não, o BO não serve. O CPF tá com problema? Entra no site da Receita Federal. Não tem internet? Não, não vai receber hoje. Não, não tem nada que eu possa fazer.”
Passam-se os dias.
“Sim, pode ficar na fila. O sistema está caindo, mas vamos tentar atender todo mundo. Tenta pelo aplicativo. Sim, eu sei, não entra. Por favor, me dá seu documento, vou tirar cópia e volto com um formulário para você assinar. Agora, assinado, vou gerar o código para sacar no caixa eletrônico. Sim, é em outra fila. Sim, tem muita gente. Não, não pode ser de outra maneira. Seu dia não é hoje, volta na data certa. Não está na conta, não liberou com o bolsa-família, não entrou na conta que você indicou. Vai conseguir sacar, um dia, não sei como, não temos essa informação. Infelizmente não posso ajudar. Sim, eu te ajudo. O documento, por favor. Não, o protocolo de refúgio não pode mais, sei que ontem disse que podia, hoje não pode mais, talvez amanhã volte a poder. Entendo que tem o passaporte, podia, não pode mais, deve voltar a poder. Sei que o jornal disse que ia antecipar a segunda parcela, não tem mais dinheiro, não vai adiantar, não tem calendário ainda. Eu sei que é sábado, que falaram que podia, também estou aqui, mas infelizmente, não consigo ajudar de outra forma. Foi mandado embora? Suspenderam seu contrato? Sim, eu vejo para você se liberou o dinheiro. ”
Na teoria tudo parece perfeito, mas quem faz as regras não tem muita idéia de para quem as regras são feitas. Quem faz as regras, não conhece as realidades. A realidade é de desespero, é do não ter o que comer ou o valor da passagem de ônibus se não receber o dinheiro. Parte integrante do que faço é ouvir. Todos tem uma história pra contar, poucos são os que têm disposição para escutar. Meu recorte é muito específico, minha agência é pequena, no centro da megalópole mais rica do país, as histórias que ouço são diferentes do se escuta nos rincões do Brasil, mas ainda assim são histórias que merecem ser ouvidas.
É um sem número de imigrantes, refugiados, moradores de cortiço, pessoas em situação de rua. Tenho uma função para cumprir, mas não é apenas isso. Quem tá ali não é um cliente chato que deveria estar em casa, é alguém que já está 6h, 8h, 10h na fila, de pé no sol mesmo sem ter certeza de que será atendido. Meu dever é respeitá-los enquanto indivíduos.
Parte integrante disso é prestar atenção no que estão me dizendo. Óbvio que provavelmente é a quinquagésima vez somente naquele dia que me contaram uma história parecida e ainda assim ela deve ser escutada. Outra parte é falar, explicar sem rodeios. As pessoas têm o mal hábito de falar com o outro como se ele fosse incapaz de entender, como se falasse a uma criança. Deve-se adaptar a linguagem, mas falando de igual pra igual. Ninguém na fila quer ouvir as 10h30 da manhã que o atendimento está cheio, que só tem um funcionário e que eu não tenho como garantir a entrada deles. Mas quando eu passo a cada 30 minutos falando isso, eles conseguem ter discernimento para saber se querem continuar esperando ou se vão embora. Spoiler: a imensa maioria fica.
No final, são as pessoas e o que elas me contam que fica gravado em mim.
Fila gigante, uma mulher de uns 30 anos chegou de manhã já muito brava. Expliquei como estava a situação, ela disse que ia ficar, precisava do dinheiro porque estava desde o dia anterior sem comer. Deu 14h, ela nem perto de entrar. Eu avisei que a maior agência da região iria abrir no sábado, dia seguinte. Ela disse que iria tentar arrumar uma “quentinha” antes de ir embora, mas que voltaria no dia seguinte. Umas 17h, eu indo pegar o ônibus encontrei ela e os filhos. Me mostrou a marmita e disse que tinha conseguido comida. Sábado, 8h da manhã, ela estava na porta da agência, Me olhou, sorriu e disse que como prometido ela estava lá. E eu respondi que, conforme também tinha prometido, estava lá. Em pouco tempo ela foi atendida e veio me agradecer.
Perdi a conta de quantas vezes me vi em meio a uma roda com pessoas de outras nacionalidades que não conseguiam fazer o cadastramento. Aparecia um outro alguém que não estava no mesmo grupo, mas ao entender um pouco mais de português ia me perguntando e explicando para os outros, tal qual um jogral. E eu falando o passo a passo a eles enquanto respondia dúvidas de outras pessoas.
Mentiria se dissesse que nunca me irrito e é sempre tranquilo. Tem muita gente folgada que trata como lixo o funcionário que está tentando ajudar. Nada que um surto, umas respostas duras e a simples constatação de não irei fazer o que quer somente porque a criatura está gritando comigo e ofendendo minha mãe, não resolva. Esses são sempre minoria. No geral, me desejam sorte, paciência e um bom trabalho.
A maioria são como o caso do senhora M****. Ela tinha CadÚnico e aquele era o dia do pagamento. Quando entrou, meu colega consultou que tinha o valor pra receber e pagou. Na hora ela começou a chorar. A sentei num canto, trouxe um copo d’água e enquanto se acalmava, ela contou sua história. Fazia dois anos que ela tinha saído de casa com os três filhos porque o marido, que sempre bateu nela, tinha começado a bater nas crianças. Ela aguentou quando era só com ela, mas nas crianças não permitiria. Morou em diferentes lugares, mas acabou indo morar na rua. Geralmente conseguia um bico ou outro, mas agora tava sem nada. O bolsa-família tinha sido cortado fazia uns 6 meses e não tinham resolvido ainda. Achava que por isso nem teria direito ao auxílio, mas que aquele dinheiro ia fazer muita diferença e por isso ela chorava. Ela foi embora e voltou 10 minutos depois. Tinha comprado uma caixa de Bis pra mim e meu colega em agradecimento. Ela pediu para me dar um abraço. Sei que estamos em distanciamento social, mas jamais poderia negar isso. É o gesto que importa.
E cada pessoa ali tem uma história, um porquê. Me torno pequena diante cada uma daquelas pessoas.
O governo obriga à exposição. As mentiras são proferidas e repetidas à exaustão. O suporte que deveria ser amplo e irrestrito é absurdamente burocratizado e negado repetidamente. São essas pessoas que, com mais de 1000 mortos em 24h precisam sair para ganhar a vida. A morte dessas pessoas não entra na estatística de hoje, mas entrará amanhã e depois.
Todo dia volto pra casa física e mentalmente destruída. Não sei que sociedade sairá disso, mas vejo diariamente que aqueles que já eram tão invisíveis, estão se tornando ainda mais descartáveis, sem o mínimo direito a uma vida digna. O descaso é generalizado, as políticas públicas insuficientes e sinto somente impotência frente ao que se aproxima. Porque esse meu dia a dia, amigos, é só o começo e conforme o tempo passar esse abismo será cada vez maior. A questão é: teremos capacidade de construir pontes ou seremos todos tragados?
Tania Regina do Nascimento Carlier Andrade
24 Maio, 2020 @ 20:10
Muito emocionante e triste, mas muito real!!! Infelizmente é dessa forma nas milhares de agências e saber que pelo nesta existe alguém com empatia e compreensão com estas pessoas que cada dia são mais excluídas da sociedade é muito bom!